domingo, 20 de novembro de 2011

PRETO NO BRANCO

     
     Eu havia recém completado onze anos, quando os americanos, em 20 de julho, pisaram pela primeira vez na Lua, naquela que foi considerada a maior aventura do homem. O ano era 1969 e menos de um mês depois acontecia Woodstock, o famoso festival que exponenciou a contracultura e popularizou o movimento hippie e a sua máxima de “paz e amor”, refrão daquela geração e das proximamente subseqüentes.
     Os tempos eram de mudanças drásticas e repentinas. Em outubro daquele semestre, Médici, o chefe do SNI à época do AI-5, tomava posse como presidente do Brasil, para realizar o governo mais repressivo e obscuro da história do país. E em novembro, Pelé marcava seu milésimo gol, bradando, durante a comemoração e em tom de alerta, a necessidade de se direcionar cuidados à infância abandonada da nação; profecia não ponderada pelas autoridades e de conseqüências nefastas tão conhecidas por nós.
     E em dezembro, como de costume, eu desembarcava no casarão dos meus avôs, para mais uma das inesquecíveis férias da série “ser feliz é tudo que se quer”.
     O sobrado dos velhos ficava no centro de Fortaleza, era estreito e comprido, com ambientes espaçosos, um quintal de muitas plantas, que se integrava prazerosamente com a parte aberta posterior do imóvel e, nos altos, voltado para a rua, um quarto enorme com sacada, local onde invariavelmente me instalava em redes embaladas por sonhos e anseios primaveris; e também por resenhas musicais, sociais ou esportivas irradiadas pelo principal meio de comunicação de uma era ainda existente, o rádio.
     Na noite da sexta-feira que antecedeu o Natal, confortavelmente estendido na minha “philomeno”, balançando-me ao ranger dos armadores, acompanhava atentamente no meu aparelhinho de pilhas, uma das partidas finais do campeonato norte-nordeste de futebol, disputado entre as equipes do Ceará, campeão da região nordeste - e pela qual já nutria uma inexplicável empatia - e a do Remo, clube do Pará e campeão da região norte.
     O escrete alencarino havia sido batido no primeiro jogo da série, em Belém, pelo placar de 2x1 e se via na obrigação de devolver o resultado e forçar uma terceira contenda. Caso contrário, veria o Leão Azul levantar a taça mais cobiçada do futebol fora do eixo SP/RJ, as potências do esporte daquele tempo.
     Foram momentos tensos. O time do Ceará perdia de 2x0 até a metade do segundo tempo, mas o destino iria modificar, com uma pilheriedade incomum, a história do clube e, porque não dizer, a minha também.    
      Não sei se por falta de artifícios visuais, mas a impressão que eu tenho é que os narradores de antigamente traduziam mais facilmente em palavras o que presenciavam, reportando com mais vivacidade o que os seus olhos viam. O fato é que fui completamente absorvido pelo magistral “crooner” e transportado, pelo esfuziante entusiasmo do radialista, para dentro da cancha desportiva.
     Parte da torcida já abandonava o estádio quando, aos 22 minutos Magela descontou, reacendendo a chama e a esperança do que já parecia perdido. Mais dez minutos, Zezinho empatou a partida e colocou fogo no velho PV.  E no finalzinho, aos 43, Gildo, o maior goleador da trajetória do “Vovô” em todos os tempos, numa cabeçada certeira, tornou realidade o que apenas vinte minutos antes parecia impossível. A primeira virada a gente nunca esquece!
     Já existia profissionalismo no futebol cearense de então, mas havia também muito amor às agremiações e isso era notório, evidente. Gildo comemorou tanto o seu improvável feito que desmaiou em campo de tanta emoção. A mesmíssima emoção que o tresloucado locutor transmitiu e que fez com que eu não conseguisse dormir por algumas horas.
     Iria acontecer uma decisiva peleja. E eu não poderia deixar de estar lá e testemunhá-la.
    Assim, no domingo seguinte à tarde, saí de casa decidido – bons tempos aqueles em que garotos não corriam perigo em deslocamentos urbanos solitários – e caminhei ansiosamente pela longa Senador Pompeu até a Gentilândia.  Adentrei a praça esportiva embasbacado: era tudo muito grande, ou eu era muito pequeno... ou os dois. Arquibancadas apinhadas de torcedores, um burburinho inquietante, a apreensão pela batalha. O show estava para começar.
     Mesmo vivenciando uma situação inusitada e no meio daquela algazarra toda, me senti tranqüilo. Ainda não existia nos estádios espaços delimitadores para facções distintas, nem torcidas uniformizadas ou organizadas. O espaço era democrático, camisas azuis e alvinegras dividiam os lugares harmoniosamente. Lembro-me de ter visto, inacreditavelmente aos dias atuais, várias bandeiras adversárias atadas com nós nas extremidades, em gestos elegantes de aceitação e amizade, já perdidos no tempo, lamentavelmente. Haveria uma rixa ali, mas ela se restringiria às linhas demarcatórias do gramado.
     E foi o que aconteceu. Eu já gostava de futebol desde sempre e não desperdiçava uma única oportunidade sequer de praticá-lo, mas nunca antes tivera a oportunidade de admirar toda a plasticidade do maravilhoso esporte de maneira tão patente. Encostado ao alambrado, sentidos aflorados, pude ouvir o som seco da bola sendo atingida com violência, perceber o esforço dos jogadores, bufando vigorosamente pela disputa da pelota; escutar a troca de palavreado, numa modalidade também exercida com o gogó, e suas subjetividades decorrentes, como a catimba e a malandragem, existentes e manifestas ao contato auditivo.
     Para um batismo, o resultado não poderia ser mais gratificante. Com gols de Gildo, Magela e Gojoba, o Ceará marcou 3x0 e se tornou campeão do Norte e Nordeste do Brasil de 1969. E eu me tornei, inexorável e irremediavelmente, torcedor do mais querido.
     Ao trinar derradeiro do árbitro Romualdo Arpi Filho, as demonstrações de alegria incontida, gritos, muito choro e extravasada emoção apenas confirmaram o que eu já me apercebera: eu encontrara definitivamente o meu ambiente. E desde então, amo este time como uma extensão de mim mesmo.


    

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