terça-feira, 29 de junho de 2010

Cartilha automobilística (ou o ABC do comprador de carros)



Não foi exatamente a cor berrante – RED Citric, como informou depois o vendedor - que chamou a sua atenção. Já tinha visto aquele crossover da KIA em revistas especializadas e agora, bem de frente aos olhos, era realmente lindo o carro. E imaginou, em um desses momentos de puro delírio consumista, a possibilidade fantástica de trocar o seu antigo, mas valoroso - diga-se de passagem - JPX Montez, motor OHC turbo diesel, da cor DUT branco, exatamente como deveria ser, acreditava até então, a pintura de todos os veículos que rodam sob o tórrido e inclemente sol da sua cidade.
Por isso resolveu adentrar a revendedora, aparentemente... como quem está podendo.
Pensara inicialmente em algo mais acessível à sua dura realidade. Percorrera revendas autorizadas, como a CDA da Fiat ou mesmo a Hyundai DHZ, mas os modelos que encontrou não o agradaram; ou estavam muito acima das suas parcas possibilidades. Chegou inclusive a procurar uma opção mais viável, dentro do mercado de usados. Peregrinou até a T&T Veículos, depois foi à FJA Pitombeira; deu uma olhada na NEW CAR e também na B&M Veicular e MCK Autos, indo a ALL CAR Comercial e em todos esses agentes chegou a encontrar automóveis interessantes, é bem verdade; e ainda que entusiasmando-se com um antigo BMW 525 ou até um conversível Mercedes 230 CLK , além de um Puma GTB, sonho de adolescência não realizado, concientizou-se da necessidade premente de um zero quilômetro.
Estacionou o valente utilitário sob os olhares insolentes dos atendentes de plantão, desconfiados da baixa capacidade de caixa que o seu decrépito carango inspirava. Mas nem ligou. Já se habituara aos efeitos que a visão do velho 4X4 costumeiramente provocava.
– Bando de babacas, não sabem nem o que é carro - conjeturou consigo mesmo.
Aproximou-se daquele sonho sobre rodas, incapaz de sustentar o queixo por seus próprios meios e achava-se prestes a babar a lataria, quando o vendedor, já quase o interpelando, foi bruscamente interrompido com o clássico “estou só dando uma olhadinha!” (já que era a pura verdade).
Ainda assim, movido não se sabe se por uma pertinência profissional mais aguçada ou mesmo pela ociosidade a que os comissionados estão sujeitos nestes tempos tão bicudos, o vendedor sugeriu-lhe dar uma examinada num outro sport utility, mais condizente com o espírito OFF Road a que o seu JEEP remetia.
Aproximou-o de um enorme SUV e começou a enumerar-lhe as qualidades inequívocas que o fabricante oferecia: motor Lambda II 3.5 V6 Dual CVVt, com 285 CV, muito mais potente, com mais torque e economia de combustível e um novo câmbio automático com SHIFT TRONIX de seis velocidades, que proporciona trocas de marcha imperceptíveis. Tração AWD 4X4 integral controlada eletronicamente. Sistema de controle de tração ESP com TCS. Freios ABS com EBD e BAS. Dotado de 10 AIR BAGS, frontais, laterais e de cortina. Compartimento refrigerado, o moderno COOL BOX, para 5 ou 7 lugares. Sistema de partida sem chave, com botão START/STOP e sensor de proximidade. Conjunto de som JBL com 6 alto-falantes, comandos no volante e disqueteira para 6 CDS, com entrada USB e interface de controle para iPOD e ainda bancos elétricos de couro, piloto automático Cruise Control e teto solar panorâmico, além de câmera de ré com monitor LCD de 3,5” no retrovisor interno.
Sentiu-se até inibido com o excesso de oferta e voltando-se ao motivo original da sua apreciação, manifestou-se resolutamente ao vendedor: - SOUL mais aquele modelo ali, se é que você me entende!
Contudo, informado do preço do seu objeto de desejo, dirigiu-se cabisbaixo à porta de saída, balbuciando raivosamente a senha dos desvalidos: PQP!

segunda-feira, 28 de junho de 2010

Maciço, amor antigo!


Era sempre muito cedo, escuro ainda, quando vinham balançar minha pequena carcaça, avisando que era chegada a hora.
Preguiçosamente levantava-me e no imenso corredor do casarão já sentia o inconfundível aroma de café quente, que minha adorável avó Laís laboriosamente preparava todos os dias.
Da garagem, “esquentando o motor”, Ricardo, nosso rotineiro chauffeur, bradava que estava tudo pronto.
E lá íamos nós.
Não me recordo exatamente porque, sequer consigo explicar como, entre tantos netos, normalmente eu era o chamado. Contudo, mais do que parecer um feito casual do destino, essa singularidade marcou indelevelmente a minha existência.. E criou uma fonte de doces recordações, que quando em vez assoma meu espírito e de onde posso sorver parte da minha infância feliz.
Zé Mendonça, meu avô querido, possuía, no topo da serra, em Pernambuquinho - antigo Rio das Cobras - um pequeno sítio de 3 hectares, o Nó Seco. Ocasionalmente, sob o pretexto de buscar algumas frutas, pegava sua reluzente Rural Willys, pneus cidade-campo com faixas brancas, seu filho mais novo como motorista e, como companhia, seu neto mais, digamos, “gente fina”.

Gostava de madrugar na estrada e lembro-me que o frio atacava minhas magras costelas. O Sol só dava o ar da sua graça, timidamente, bem depois do sugestivamente denominado Alvorada Country Clube, já pra lá da Monguba ou Pacatuba. Podia-se, então, observar a exuberante vegetação montanhosa da Aratanha, que se apresentava com um verde dominante, salpicado de, por vezes, pontos de amarelo ou rosa da floração dos paus d’arco e, mais espaçadamente, o branco das barrigudas. Sinal de próximo bom inverno, dizia o velho, com a experiência de quem conhecia aquelas paragens com a intimidade de muitos anos.
Dois aspectos paralelos ao caminho atraiam minha atenção e enorme curiosidade: a linha férrea, sempre presente, por vezes à margem da rodovia ou, em outras ocasiões, cruzando-a; pela importância da própria, pode-se dizer que, na realidade, a estrada é que a acompanhava. E também, a marcante presença dos tubulões metálicos que traziam a água de Acarape, naquela época, o único reservatório que abastecia a antigamente diminuta cidade de Fortaleza.

Após Baturité, cidade natal do homem, subir o Maciço quando a força do astro-rei ainda não conseguia se pronunciar, somente agravava a falta de aquecimento na caminhonete. E, dali por diante, não existia qualquer espécie de pavimento. A estrada era por demais estreita, não permitindo na quase totalidade do percurso a passagem simultânea de dois veículos e as rodas do carro beirava assustadoramente os altos abismos. Quando chovia ou o piso ainda se encontrava úmido da noite anterior, a situação se agravava, pois a subida da serra é quase toda argila, mica e barro de louça. Entretanto, nada que o Overland 4 x 4 e o trabalho do primoroso condutor não pudessem resolver, apesar das freqüentes barreiras “derretidas” no caminho. E tome balanço!

Lá em cima não havia ainda luz elétrica e as casinhas expeliam, pitorescamente, através das suas chaminés, torvelinhos de fumaça. Os habitantes eram ingênuos e o tráfego de veículos tão ocasional que, invariavelmente, os transeuntes à beira do caminho paravam para observar a nossa passagem. E, a baixa velocidade da condução permitia se ouvir os galos, repetidamente, cantando espavoridos, como se alertassem uns aos outros à invasão dos seus bucólicos ambientes. Com certeza absoluta, aquele era o lugar onde existiam mais galos no mundo.
Costumava marcar nossa marcha de subida não pelos quilômetros rodados e sim pelos sítios existentes, enormes àquela época, com casas suntuosas e suas capoeiras, ou faxinas, herança dos áureos tempos dos cafezais, plantados à sombra das ingazeiras e responsáveis pela pompa e abundância que marcou um passado glorioso do maciço. Numa sucessão familiar, desfilavam ante os meus olhos, como em um filme, o Tijuca, primeira grande propriedade da serra, ainda no século XVIII e onde floresceram os primeiros pés de café vindos da França, via Pará; o Labirinto, com seus canaviais sempre envoltos pelas brumas nevoentas da aurora; o Brejo, logo após o Uirapurú e a entrada da Gruta; o Venezuela, antigo Cafundó, onde o Conde D’Eu e a sua comitiva da Expedição Científica ficaram hospedados; o Macapá, que um dia foi hotel e cassino; o Humaitá; o Monte-Flôr ; o Rio Negro; o Cana-Brava e seu lindo laguinho “arrodeado” de palmeiras e em seguida, o Logradouro com o seu charme fascinante, inalterado até hoje; o Uruguaiana, tão grande nos tempos anteriores, que abrangia serra, quebrada e sertão; logo depois, o Baixa Fresca, que foi do meu bisavô e onde meu avô morou até certa idade e onde existiam palmeiras imperiais altíssimas, “que eu ajudei a plantar”, como dizia o velho, com enlevo e emoção indisfarçáveis. Quantas belas lembranças...

O cheiro do mato, odores marcantes da espessa Mata Atlântica, invadia o interior do veículo com a mesma intensidade dos sons da passarada ou os latidos dos assustados cães e quanto maior fosse a altitude alcançada, menor a arrepiante temperatura; e aumentava a diversidade das cores, a beleza das paisagens e também a minha grande expectativa e ansiedade pela nossa chegada. Depois da Forquilha avistava-se, bem ao lado da, naquela altura, vereda, a casa branca da fazenda Floresta, de “Rodrigo Argolo Caracas”, como convenientemente frisado: pronto! Apenas virando à esquerda e, de longe se avistava a propriedade.
Na beira da estradinha que atravessa o terreno, do lado oposto à casa do morador, a única existente, ficava a centenária jaqueira, onde, à sombra da sua frondosa copa se estacionava o utilitário, para se embarcar os produtos do sítio: chuchus, laranjas, abacates, tangerinas, jacas, ocasionalmente urucum ou café e plantas ornamentais, como samambaias ou bromélias e as muitas flores, sempre-vivas e copos de leite. Além de bananas, muitas bananas, milhares de bananas.

Se a viagem acontecesse em um domingo, poderíamos, antes de nos dirigirmos ao terreno e passando ao largo de Guaramiranga, irmos até a movimentada feira de Pacotí, comprar “carne de vaca” ou uns taludos pernis de porco, como também outras variedades de frutas, especiarias, rapaduras, batidas e alfenins. Ou ainda ferramentas, insumos, sementes.
Ao burburinho de barraqueiros, mascates e fregueses, numa algazarra extravagante, misturavam-se os urros de animais amarrados e dispostos à venda, com a zoada dos inúmeros caminhões bananeiros e paus-de-arara apinhados de matutos.

Passando obrigatoriamente na bodega do Chico Birim, para tomar uma Brahma (tinha de ser Brahma) e relembrar com o antigo amigo feitos do arco da velha, ali meu avô desfiava causos, alguns bem cabeludos. Não se discutia de forma alguma a veracidade das escabrosas estórias; a dúvida era somente quanto ao ano do acontecido, se em 41... Ou teria sido em 36? Para mim pouco importava, eram maravilhosas de qualquer maneira. Encostado àqueles antigos balcões de madeira enegrecidos, quase sempre lambuzados por banha de porco salgada, escutava atento e encantadamente as conversas, enquanto minhas narinas percebiam as fortes emanações de peixe seco, fumo de rolo e cachaça, que inundavam o ambiente.

Contudo, não durava muito o nosso dia de aventuras: a inquietude do meu avô fazia-o estar sempre com pressa e regressávamos para casa ainda a tempo de “pegar” o almoço, que via de regra, nem era servido tão tarde assim.
Viajar é sempre muito bom. Acompanhado por pessoas queridas, melhor ainda. Para lugares que você ama e que povoam suas memórias, então, criam-se, indefectivelmente, momentos mágicos, inesquecíveis.

Ainda hoje, quando subo a serra, recordo do ronco brabo daqueles seis cilindros, da intrepidez daquelas empreitadas, do arrojo e coragem com que nos jogávamos naquelas ladeiras e na satisfação de vencê-las, com sobriedade. Muito da fascinação que sinto por máquinas, devo àquelas duas figuras, que faziam o difícil se tornar fácil, com uma tranqüilidade desconcertante. Poucas vezes me senti tão seguro, quanto no banco traseiro daquela Rural.
Alguns anos depois, já habilitado, tornei-me, com um orgulho que não me larga, o motorista que levava o Zé Mendonça para suas rápidas andanças nos territórios que outrora lhe pertenceu. Foram tantas e esplêndidas viagens, subidas e descidas, frio, calor, cansaço e admiração. Aprendi, definitivamente, a apreciar estradas, motores e lugares. E tive o melhor professor que alguém poderia ter.
Todas estas outras magníficas recordações dariam, certamente, para escrever um livro... Mas isto já é outra estória!!!