sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

O colar de pérolas azuis




Fulton Oursler


No dia em que a pequenina Joan Grace abriu a porta de sua loja, Peter Richard era realmente o homem mais solitário da cidade.
Ele tinha herdado de seu avô uma loja de antiguidades. Na vitrina minúscula, apinhavam-se os objetos mais heterogêneos: pulseiras, medalhões do século passado, anéis de ouro, caixinhas de prata, jades e marfins esculpidos, figurinhas de porcelana.
Naquela tarde, uma meninazinha estava diante da vitrina, a testa apoiada no vidro. Seus olhos enormes estudavam atentamente cada um daqueles tesouros, como se procurassem alguma coisa. Por fim, ela endireitou-se, com um ar satisfeito, e entrou na loja.
O interior estava ainda mais atulhado do que a frente. As prateleiras quase desabavam sob o peso das caixinhas de jóias, pistolas antigas, relógios e lâmpadas, enquanto que sobre o assoalho amontoavam-se velhos cães de chaminé, bandolins e toda espécie de velharia bem difícil de catalogar.
Peter estava atrás do balcão. Embora tivesse pouco mais de trinta anos, seus cabelos já estavam grisalhos. Contemplou a menina com um ar tristonho.
- Meu senhor – disse ela – posso olhar de perto o colar de pérolas azuis que está na vitrina?
Peter afastou a cortina e apanhou o objeto. As turquesas brilharam com vivo esplendor na palma da mão que ele estendeu com indiferença para a jovem freguesa.
- Que lindo! – disse a criança. – Faça o favor de fazer um embrulho bem bonito, sim?
Peter examinou-a com um olhar um tanto frio.
- Alguém mandou você buscar esse colar?
- Não. É para minha irmã mais velha. É ela que me cria. É o primeiro Natal que passamos juntas, depois que mamãe morreu. Quero dar-lhe um bonito presente.
- Quanto é que você tem? – perguntou Peter, sem procurar esconder sua desconfiança.
A meninazinha desatou o lenço e derramou sobre o balcão um punhado de moedas.
- Quebrei meu cofre – explicou ela, com simplicidade, e ficou esperando tranquilamente.
Peter Richard fitou-a com ar pensativo. Depois, prudentemente, pegou novamente o colar. A menina não podia ter lido a etiqueta pequena. Como dizer-lhe a verdade? O olhar azul, tão confiante, despertou subitamente nele a dor de uma ferida sempre viva.
- Espere um pouquinho! – disse ele, dando-lhe as costas.
Depois, por cima do ombro, perguntou-lhe amavelmente, absorvendo-se num trabalho aparentemente minucioso:
- Como se chama, filhinha?
- Joan Grace.
Quando Peter virou-se, tinha na mão um embrulho de papel de sêda vermelho, amarrado com um laço verde.
- Toma – disse ele, simplesmente – e presta atenção, não o percas no caminho.
A meninazinha saiu, dirigindo-lhe um sorriso radiante. Ele seguiu-a com os olhos, invadido por uma onda de tristeza. Aquela linda criança e seu colar tornavam a mergulhá-lho em seu desgosto habitual. Os cabelos de Joan Grace eram louros como o trigo, seus olhos, azuis como o mar. E, num passado ainda próximo, Peter amara uma moça que tinha os cabelos louros como os dela, e os olhos do mesmo azul. O colar de turquesas cintilantes era para ela.
Mas bastara uma derrapagem de um caminhão numa estrada escorregadia, numa noite chuvosa, para matar aquele belo sonho.
Desde então, Peter Richard vivia solitário, remoendo sua dor. Dava a seus fregueses uma atenção cortês, mas a vida parecia-lhe terrivelmente vazia. Concentrado em si mesmo, acabrunhado pelo desgosto, mergulhava pouco a pouco num desespero cego.
Durante os dez dias que se seguiram à visita de Joan, os negócios andaram bem. Conversando alegremente, os transeuntes entravam, examinavam os objetos, regateavam. Já era tarde, na véspera de Natal, quando o último cliente partiu. Peter Richard suspirou aliviado, ao fechar as gavetas da caixa. Por fim, terminara. Mas enganava-se.
A porta abriu-se e entrou uma mocinha, como um pé-de-vento. Peter sentiu que aquele rosto lhe era conhecido, embora não soubesse dizer onde e quando o tinha visto. Os cabelos da visitante eram de um louro quente, os olhos de um azul profundo. A moça tirou da bolsa um embrulhinho de papel de sêda vermelho. As turquesas brilharam sobre o balcão.
- Esse colar é de sua loja, senhor?
- Sim – respondeu Peter, baixinho. – Com efeito, é daqui senhorita.
- E as pedras são verdadeiras?
- Certamente. Não de primeira qualidade, mas verdadeiras.
- O senhor se lembra a quem o vendeu?
- A uma meninazinha, há uns dez dias. Chama-se Joan. Quer dá-lo de presente de Natal a sua irmã mais velha.
- Quanto vale?
- Não digo nunca o preço que um freguês pagou – respondeu Peter, gravemente.
- Joan nunca tem mais que alguns trocados na bolsa. Como é que ela pôde comprar esse colar?
Mas Peter já estava refazendo o embrulho, dobrando e alisando o papel com cuidado. Tinha acabado de dar o laço na fita e contemplou sua interlocutora com ar sonhador.
- Ela pagou mais caro do que qualquer pessoa – disse ele. – Deu tudo o que possuía.
Um grande silêncio encheu a lojinha de repente. Depois, em algum campanário das vizinhanças, um carrilhão começou a tocar. Uma estranha sensação de renovação invadiu o coração de Peter.
- Mas por que o senhor fez isso?
- Hoje é Natal – respondeu Peter, entregando o embrulhinho à sua visita. – E, para minha infelicidade, não tenho ninguém a quem dar um presente. Permite-me acompanhá-la até em casa e, lá, desejar-lhe um feliz Natal?
E foi assim que, ao som dos sinos, no meio de uma multidão alegre, Peter Richard e uma moça cujo nome ele ainda nem sabia, entraram no dia que enche de esperança o coração dos homens.


Lí este conto natalino, quase pueril, ainda criança, aos dez anos de idade. Fazia parte do Livro da Juventude, uma publicação anual das Seleções do Reader's Digest, na sua edição de 1968.
Apesar da singeleza do texto, a mensagem que o autor tentou passar ficou profundamente marcada desde sempre no meu ser: a de que, independente do valor nominal das coisas, o mais importante é o quanto voce se propõe a se dar para conseguí-lo.
Fico imaginando, às vezes, em que espécie de mundo viveríamos, se as pessoas se permitissem a dar tudo que tivessem, em troca da alegria dos outros.

quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

Adler's advice!

Para um certo amigo meu (mas, amigo mesmo!), precipitadinho todo:



"Na vida cotidiana, um erro de julgamento respeitante a outro ser humano não é necessariamente seguido de perto por trágicas consequencias. Estas podem ocorrer tanto tempo depois do erro, que se torna difícil estabelecer a conexão entre uma coisa e outra. Não raro nos admiramos bastante ao ver quão grandes infortúnios se seguem, decênios depois, à má compreensão que tivemos de um homem. E essas lamentáveis ocorrências é que nos ensinam a necessidade e o dever de adquirirmos, todos nós, um real e operante conhecimento da natureza humana".

Se liga aê, cumpadi!

terça-feira, 30 de novembro de 2010

North-American B-25 Mitchell



Meu pai era tenente especialista da Força Aérea Brasileira, servindo no 1/4º Grupo de Aviação de Caça, sediado, àquela época, em Fortaleza, quando, em 1964, o governo adquiriu para o seu esquadrão, alguns aviões Lockheed T – 33 Shooting Star, monorreatores à jato, utilizados para treinamento.
Teve então, como encarregado da manutenção dessas aeronaves, que ir buscá-las nos EUA e passar alguns meses na fábrica, em Maryland, uma enorme indústria de produtos aeroespaciais, aprendendo os segredos da “criança” e se tornando, com isso, um expert em veículos movidos a reatores.
Este fato foi preponderante para que, quando, no ano seguinte, o Ministério da Aeronáutica criasse a Barreira do Inferno, o primeiro campo de lançamento de foguetes do país, no Rio Grande do Norte, ele fosse chamado a integrar, como técnico, o seu quadro de funcionários.
E por causa disso, fui residir dentro da Base Aérea de Natal, onde morei durante três anos, até que ele passasse à reserva, em 1970.


Apesar de não ser o ponto mais oriental do Brasil, Natal é a capital brasileira mais próxima da África e a rota até Dakar, no Senegal, foi a mais utilizada pelos pioneiros da aviação transatlântica no hemisfério sul, quando a autonomia dos aviões tinha, pelo elevado consumo e a baixa velocidade, várias limitações.
Por esse motivo geográfico, os norte-americanos criaram, durante a II Guerra Mundial, uma enorme estrutura aeroviária para servir de apoio ao que se chamaria depois “Trampolim da Vitória”.


O espaço em que a base está instalada é enorme, em se tratando de um aeródromo. São mais de 1200 hectares de superfície. Mas, o que impressiona mesmo é a quantidade de equipamentos que os ianques ali deixaram.

Pode-se dizer que seja uma pequena cidade, maior até que alguns pequenos municípios do interior do estado. Tem de tudo lá: supermercados, lavanderias, cinemas, igreja, hospital, vilas para oficiais, sargentos, cabos e soldados e seus respectivos cassinos; incontáveis quadras esportivas, pistas de atletismo, campos de futebol, drive-in, clubes, anexos para civis e pessoas em trânsito, oficinas, hangares e um sem número de galpões, muitos abandonados, sem finalidade nos dias atuais.


Morava numa vila com cinqüenta casas, todas de oficiais aviadores, intendentes ou especialistas e possuía muitos amigos da minha idade. Desfrutávamos, as crianças filhas de oficiais, de algumas regalias e acesso quase irrestrito a todas as dependências da base. E tínhamos, através das nossas bicicletas, meio de nos locomovermos livremente naquele mundaréu de vias asfaltadas, fazendo, em grupo, ou mesmo sozinhos, estripulias impensáveis para garotos de outros ambientes.


Assim, descíamos através dos respiradouros dos paióis de bombas, passeando entre artefatos explosivos de mil e quinhentas libras, numa quantidade assustadora, armazenados em casas-matas escondidas no meio do mato, dez ou quinze metros abaixo do solo; ou, nos abaixávamos entre o capinzal existente nas cabeceiras das pistas de pouso, enquanto formações de Aerotec T-23 Uirapurú em treinamento, passavam raspando sobre nossos cabelos para aterrissarem e aí pegávamos nossas bikes e saíamos atrás dos aviões em desabalada carreira; até que a Kombi do CAN, alertada pela torre de controle, viesse nos retirar dali, com integrantes nitidamente aborrecidos pela nossa presença em local não permitido, mas com a cautela verbal que a prudência recomendava quanto aos descendentes dos seus superiores. Adorava peregrinar pelos setores mecânicos e sempre íamos até os Serviços Gerais, onde sucatas de aeronaves viravam nossos brinquedos e onde se encontrava um exemplar de um B-25, naquele tempo com o estado de conservação bastante sofrível.


Ontem retornei, depois de quarenta anos, à Base Aérea de Natal. Fui com meu pai, atualizar seus dados cadastrais, exigência anual do comando aos seus reservistas. Ele aproveitou que se encontrava na capital potiguar, para fazê-lo pessoalmente e quando adentrei o velho quartel, próximo ao setor de inativos, não pude deixar de me emocionar com a visão daquele antigo avião, totalmente reformado, lindo, altivo, demonstrando soberbamente toda a sua galhardia.




Transportei-me imediatamente para momentos do passado, quando um garoto magricela corria por dentro daquela fuselagem, imaginando-se um ás da pilotagem, instalado na carlinga de comando, manche às mãos, controle absoluto. O verdadeiro rei da nacele; ou então, fazendo-se artilheiro, disparando impiedosamente suas metralhadoras Brownings nos bojos de cauda ou de nariz contra os caças Stukas ou Messerschmitts alemães, abatidos magistralmente com uma precisão invejável.


Adoro máquinas, mas particularmente, amo aviões, os mais maravilhosos brinquedos já inventados pelo homem. Cresci ao lado deles, sentindo o cheiro do querosene crispar minhas narinas, escutando seus motores roncar até tremer minha medula, vibrando com rasantes e acrobacias espetaculares, escutando conversas de caserna entre pilotos sobre seus feitos heroicos. Acho alguns modelos primorosos, clássicos, magníficos. Porém os Mitchells, com sua cauda de duplo leme e sua porta na barriga, são para mim uma obra de arte.
E tudo por causa do 5133, o meu avião, companheiro de tantas missões, num tempo em que a imaginação é que alçava os ares, somente para me fazer feliz!



Este aeroplano foi utilizado pelo 5º GAv de 1947 a 1957, na formação de pilotos de bombardeio, tendo voado mais de 50.800 horas em Natal.

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

Por via das dúvidas...


O silêncio predominante pode ser bruscamente interrompido pelo adentrar em tropel da turba numa extravagante algazarra.
Do considerável e incessante calor do fogão, em cassoulets ou cozidões estupendos, corro às janelas, oitavo andar, onde uivantes alísios apaziguam meu suor; e o contemplar do pélago salgado acalma minha alma, ou a de quem se propuser admirá-lo.
Nos isolados aposentos repousa-se em reconfortantes quietudes, enquanto o rock’n roll, em decibéis incontroláveis, transforma a sala em dancing.

A casa dos contrastes, onde opostos se coadunam.

Perfeitamente natural que se encontre sobre uma prateleira qualquer, produtos com indicações antagônicas, lado a lado.
Para situações inusitadas, claro! Lá, o que se sucederá é uma incógnita constante...

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Equinócio Austral

Amanhã de manhã já será primavera e isto para mim se reveste de uma enorme significância.
Difícil quem possa descrevê-la com tanta precisão e sensibilidade.





Primavera

Cecília Meireles

A primavera chegará, mesmo que ninguém mais saiba seu nome, nem acredite no calendário, nem possua jardim para recebê-la. A inclinação do sol vai marcando outras sombras; e os habitantes da mata, essas criaturas naturais que ainda circulam pelo ar e pelo chão, começam a preparar sua vida para a primavera que chega.

Finos clarins que não ouvimos devem soar por dentro da terra, nesse mundo confidencial das raízes, — e arautos sutis acordarão as cores e os perfumes e a alegria de nascer, no espírito das flores.

Há bosques de rododendros que eram verdes e já estão todos cor-de-rosa, como os palácios de Jeipur. Vozes novas de passarinhos começam a ensaiar as árias tradicionais de sua nação. Pequenas borboletas brancas e amarelas apressam-se pelos ares, — e certamente conversam: mas tão baixinho que não se entende.

Oh! Primaveras distantes, depois do branco e deserto inverno, quando as amendoeiras inauguram suas flores, alegremente, e todos os olhos procuram pelo céu o primeiro raio de sol.

Esta é uma primavera diferente, com as matas intactas, as árvores cobertas de folhas, — e só os poetas, entre os humanos, sabem que uma Deusa chega, coroada de flores, com vestidos bordados de flores, com os braços carregados de flores, e vem dançar neste mundo cálido, de incessante luz.

Mas é certo que a primavera chega. É certo que a vida não se esquece, e a terra maternalmente se enfeita para as festas da sua perpetuação.

Algum dia, talvez, nada mais vai ser assim. Algum dia, talvez, os homens terão a primavera que desejarem, no momento que quiserem, independentes deste ritmo, desta ordem, deste movimento do céu. E os pássaros serão outros, com outros cantos e outros hábitos, — e os ouvidos que por acaso os ouvirem não terão nada mais com tudo aquilo que, outrora se entendeu e amou.

Enquanto há primavera, esta primavera natural, prestemos atenção ao sussurro dos passarinhos novos, que dão beijinhos para o ar azul. Escutemos estas vozes que andam nas árvores, caminhemos por estas estradas que ainda conservam seus sentimentos antigos: lentamente estão sendo tecidos os manacás roxos e brancos; e a eufórbia se vai tornando pulquérrima, em cada coroa vermelha que desdobra. Os casulos brancos das gardênias ainda estão sendo enrolados em redor do perfume. E flores agrestes acordam com suas roupas de chita multicor.

Tudo isto para brilhar um instante, apenas, para ser lançado ao vento, — por fidelidade à obscura semente, ao que vem, na rotação da eternidade. Saudemos a primavera, dona da vida — e efêmera.


Texto extraído do livro "Cecília Meireles - Obra em Prosa - Volume 1", Editora Nova Fronteira - Rio de Janeiro, 1998, pág. 366.

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

Matador de aluguel

O agudo gutural, descomunal, soou com tal intensidade que, num primeiro instante, temi pela segurança dela. Chegou a me arrepiar!
O pensamento inicial foi que ela pudesse ter surpreendido algum estranho que houvesse adentrado o apartamento e, aterrorizada, gritasse de forma tão visceral.
Meu corpo reagiu como uma mola e, tal cavaleiro andante, parti célere contra o horrendo dragão que atormentava minha donzela.
Para o maior alívio que tive o prazer de vivenciar, constatei que o medonho perigo não passava de um... inseto.
Não me refiro aqui aos perigosos artrópodes que habitam as selvas tropicais, como aranhas, escorpiões e afins, capazes de, com suas venenosas picadas, provocar choques anafiláticos ou mesmo mortes por paradas cardiorrespiratórias.
O ser terrível que consegue deflagrar o pavor total na criatura mais valorosa e corajosa que conheço é uma simples Periplaneta Americana, a barata doméstica.
Animal sem modificações morfológicas significativas nos últimos 400 milhões de anos, as blattarias ocupam um dos últimos lugares nas listas de espécimes em extinção e, dizem, numa eventual hecatombe nuclear, dominariam o planeta.
Enquanto isso não acontece, elas se contentam, de quando em vez, de dominar a minha casa, transformando-me em uma espécie de bombeiro de plantão, sempre pronto a agir, full time, ao menor sinal (e que sinal!) de alerta.
Claro que, com todos esses anos de prática e após milhares de ocorrências, desenvolvi técnicas de matança que me qualificariam como o exterminador #1 de neópteros.
O que me transforma no mais requisitado socorredor do bairro, já que minhas filhas, que nasceram sem o pecado original e nem o temor de baratas, pelo mau exemplo da mãe, costumam emitir pedidos de ajuda com a mesma freqüência e igual estridência.
Não encontro explicação para tanto receio por parte dessas minhas mulheres. Entendo a repulsividade que estes seres asquerosos provocam; o perigo para a saúde que elas representam e o quanto é inconveniente conviver com animais indesejáveis que, através dos tempos, tornaram-se cosmopolitas.
Mas o que leva uma pessoa a sair correndo como o diabo corre da cruz, tornando subjacente qualquer outra atividade em curso, no único intuito de escapar de nada?
Deve haver algum ramo da psicologia que possa responder.
Já presenciei minha esposa abandonar a direção do carro em movimento, em avenida tumultuada pela hora do rush, deixando a porta do veículo aberta, enquanto corria no asfalto como uma maluca desvairada no meio do trânsito, somente porque uma “francesinha” passou por cima do seu pé.
Tomara que o nosso plano de saúde cubra assistência psiquiátrica; não tanto para ela(s), senão para mim próprio, que não consigo mais comprar calçados, sem primeiramente analisar os solados sob o prisma da dinâmica assassina, imaginando bicudos rasteiros, esmagamentos impiedosos ou abatimentos aéreos.
Haja eficiência!

Secunda non habent unquam modum

Pouco importa o quanto tua ansiedade consiga lubridiá-lo, elastecendo o passar dos dias, num arrastado interminável.
Tampouco quão suscetível a este efeito possas te tornar, pela expectativa a que teu coração te obriga.
O tempo, qualquer que intervalo utilize, sempre chegará. Verdade insofismável!
E trará com ele a esperança de dias alegres e vida tranqüila.

Ou, traduzindo Sêneca: - A felicidade é incontentável.

domingo, 12 de setembro de 2010

Sete verdades!

O porque de algumas criaturas serem privilegiadas pela natureza, com uma lucidez e discernimento impressionantes, em detrimento de todos os demais viventes, é uma questão que talvez eu nunca consiga explicar.
Me desfiz do meu armário de fitas VHS, reminiscência dos meus tempos de video maker e reví, colada na porta, um recorte de jornal com essa jóia do pensamento de Kalil Gibran:

"Sete vezes desprezei a minha alma."

"Quando a vi disfarçar-se de humilde, para alcançar a grandeza."
"Quando a vi coxear na presença de coxos."
"Quando lhe deram a escolher entre o fácil e dífícil - e ela escolheu o fácil."
"Quando ela cometeu um mal, e consolou-se com a idéia de que outros também cometem o mesmo mal."
"Quando aceitou a humilhação por covardia e atribuiu isso a sua virtude e tolerância."
"Quando desprezou um rosto por julgá-lo feio, e não notou a beleza de um espírito."
"Quando considerou algum elogio como o reconhecimento de sua capacidade."

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Ícaro brasiliano

..."se eu vi mais longe, foi por estar de pé sobre ombros de gigantes." (Isaac Newton)

Em papo de biriteiros, rolou a pergunta do grande amigo afro-lusitano-açoriano : Por que os brasileiros insistem em afirmar Santos Dumont como o inventor do avião, se se sabe que os irmãos Wright voaram antes dele?
Afora o bairrismo exagerado dos habitantes do nosso colonizado país - compreensivo, até certo ponto - as circunstâncias daquele período de grandes e incessantes descobertas, talvez expliquem a existência da eterna polêmica.
É incontestável, pela data do evento, 17 de dezembro de 1903, que a primazia de se lançar ao ar com um aparelho voador controlado, “mais pesado que o ar”, coube aos irmãos Wilbur e Orville Wright, com seu Flyer 1. Feito reconhecido, inclusive, pela Fédération Aéronautique Internationale.
Os que contradizem a distinção, argumentam que os Wright se utilizaram de uma espécie de catapulta e de uma colina na praia de Kitty Hawk para alavancar o aeroplano, além do fato de não existirem testemunhas e nem registro algum do acontecimento.
Os que a defendem, alegam que os artifícios utilizados eram apropriados para se tirar proveito dos fortes ventos predominantes no litoral da Carolina do Norte, USA e que a falta de documentação motivou-se exclusivamente pela acirrada disputa da patente da criação, já que inúmeros concorrentes em todo o mundo utilizavam-se dos resultados alheios para proveito próprio.
A verdade é que não existe um inventor para o avião. Artefatos que resultam de várias tecnologias são provenientes da condensação do trabalho de muitas pessoas, em diversos campos distintos. Inclusive porque, se o mérito da invenção tivesse que ser dirigido a alguém, o detentor seria o cientista inglês George Cayley, que criou, cem anos antes, um aeromodelo de planador auto-estável, considerado o primeiro aeroplano da história e que serviu de inspiração aos demais modelos advindos.
De fato, o primeiro vôo controlado de um mais pesado que o ar, com propulsão a motor, foi feito pelo francês Clément Ader, em 9 de outubro de 1890; mas, realizado sob segredo militar, somente foi divulgado muitos anos depois. Oficialmente os americanos voaram primeiro, já que o vôo do 14 BIS somente ocorreu em 23 de outubro de 1906.
Porém, quem tiver a curiosidade de se inteirar sobre a história de Santos Dumont, poderá conhecer a sua extraordinária obstinação em se alçar aos ares, desde a última década do século XIX, com seus balões, depois dirigíveis - que quase o mataram, em diversos acidentes – até 1910, ano em que encerrou as atividades da sua oficina, quando começou a sofrer de esclerose múltipla.


Genial em suas idéias e experimentos, foi ele, inquestionavelmente, quem equacionou os problemas de decolagens e aterrissagens, o que lhe rendeu, com muita justiça, o epíteto de “pai da aviação”. Tanto é verdade que, menos de um ano após sua façanha no campo de Bagatelle, todos os inventores aeronautas importantes estavam voando.
Seu revolucionário Demoiselle (1907), precussor do ultraleve, com que o mineiro de Palmira visitava seus amigos aristocratas nos arredores de Paris, pousando nos gramados das mansões campestres para tomar um chá, tornou-se, com a distribuição gratuita dos projetos, o primeiro avião a ser produzido em série na história. Cerca de 300 foram confeccionados pela fábrica Clément Bayard.
Comparando-se as duas imagens abaixo, separadas cronologicamente por menos de 70 anos, comprova-se que a genialidade e talento de um homem, independentemente da nacionalidade ou atribuição de alguma realização, pode colocá-lo em um patamar muito acima dos demais e bem à frente do seu tempo.

sexta-feira, 20 de agosto de 2010

Questão cultural

Algumas mensagens se perpetuam na internet e esta, que abaixo transcrevo, já roda a algum tempo no mundo virtual.
Não é a primeira vez que a recebo, mas, talvez, motivado pelo civismo que o período eleitoral impôe a todos nós, cidadãos brasileiros, resolví postá-la, na esperança, ainda que vã, que a repetição sistemática desses princípios, possam, mesmo que a largo tempo, incultir algumas verdades nas nossas consciências.
Investigações demonstram que a diferença entre os países pobres e ricos não é a idade.
Isto pode ser demonstrado por países como Índia e Egito, que têm mais de 4000 anos e ainda são muito pobres.
Por outro lado, Canadá, Austrália e Nova Zelândia, que apenas 150 anos atrás eram desconhecidos, hoje são países desenvolvidos e ricos.
A diferença entre países pobres e ricos tampouco está nos recursos naturais disponíveis.
O Japão possui um território limitado, 80% montanhoso, inadequado para a agricultura e a criação de gado, mas é a segunda economia mundial. Este país é como uma imensa fábrica flutuante, importando matéria-prima de todo o mundo e exportando produtos manufaturados.
Outro exemplo é a Suíça, que não produz cacau, mas tem o melhor chocolate do mundo. Em seu pequeno território cria animais e cultiva o solo durante apenas quatro meses no ano. Não obstante, produz laticínios da melhor qualidade. É um país pequeno que oferece uma imagem de segurança, ordem e trabalho, transformando-o na caixa-forte do mundo.
Executivos de países ricos que se relacionam com países pobres evidenciam que não existe diferença intelectual realmente significativa. A raça, cor da pele tampouco são importantes: imigrantes qualificados como preguiçosos em seus países de origem, são a força produtiva de países europeus ricos.
Onde está então, a diferença?
A diferença é a atitude das pessoas, moldada no decorrer dos anos pela educação e pela cultura.
Ao analisar a conduta das pessoas nos países ricos e desenvolvidos, constatamos que a grande maioria segue os seguintes princípios de vida:
1º - Ética, como princípio básico.
2º - A integridade.
3º - A responsabilidade.
4º - O respeito às leis.
5º - O direito pelos direitos dos demais cidadãos.
6º - O amor pelo trabalho.
7º - O esforço para economizar e investir.
8º - O desejo de superar.
9º - A pontualidade.
Nos países pobres, apenas uma minoria segue esses princípios básicos em sua vida diária.
Não somos pobres porque nos faltem recursos naturais ou porque a natureza foi cruel conosco.
Somos pobres porque nos falta atitude. Falta-nos vontade para cumprir e assumir esses princípios de funcionamento das sociedades ricas e desenvolvidas.
Somos assim por querer tomar vantagem sobre tudo e todos.
Somos assim por ver algo que está mal e dizer: “deixa como está”.
Devemos ter atitudes e memória viva.
Só assim mudaremos o Brasil de hoje.
(traduzido por Jorcelangelo L. Conti)

sexta-feira, 13 de agosto de 2010

FRINFA...

O celular tocou em plena madrugada, contudo, não me encontrou, como seria normal, jogado nos braços de Morfeu.
Naquela noite estava dando uma virada, fazendo o revestimento de um balcão numa loja 24 horas. Serviço que, pelo manuseio de cola de contato e seus odores desagradáveis, somente poderia ser executado naquele turno.
Ainda que em plena atividade às três da manhã, não pude deixar de me alarmar com o avançado da hora da ligação. Era meu companheiro Cesar Herbster que, sem mais rodeios, me bateu, na lata: - Tenho uma notícia ruim para te dar.
Meu coração deu um pulo! Imaginei, naquele momento, que um amigo comum nosso, convalescente de uma intervenção cirúrgica recente e ainda hospitalizado, não tivesse resistido à dura situação que estava atravessando.
Imaginei errado.


Ranildo não foi meu colega de infância, nem mesmo conhecido de longa data. É bem verdade que sua irmã era amiga da minha esposa e nos relacionávamos há muitos anos, mas não a sabia como tal. E até a data da fatídica chamada, fazia pouco mais de dois anos que nos encontráramos, motivados pelo iatismo, esporte que pratico desde pequeno e que, daquele instante em diante, com a compra de um veleiro pelo próprio, passou a fazer parte da realidade dele também.
Voluntarioso e inquieto, propôs-se a recuperar o velho barco e passou a contar com a minha ajuda. Mesmo que, com a sua inexperiência na matéria, inventasse soluções improváveis para certos problemas e que, com a teimosia que lhe era característica, achasse que estava no caminho certo, era capaz de ter idéias criativas e encontrar soluções surpreendentes, por vezes. Imbuídos do mesmo propósito, brigávamos e discutíamos freqüentemente, sempre com moderação, mas, principalmente, nos divertíamos muito em brincadeiras e gargalhadas.
Emotivo nas ações, era dono de uma alma por demais leve, fruto decerto do enorme coração que carregava. Sua bondade e ingenuidade contrastavam com seu porte físico avantajado ou sua fisionomia carrancuda e quem não o conhecia, não poderia desconfiar do espírito bonachão que se ocultava por trás daquela sua meninice e dos seus trejeitos, exagerados, até.
Irascível em alguns momentos, tinha a capacidade de retornar à normalidade rapidamente, como se nada tivesse acontecido e possuía o raro dom de se desculpar quando se julgava errado, sobretudo nos aspectos interpessoais.
Identificávamo-nos em várias atividades, tínhamos vários gostos em comum. Paixões por motocicletas, bikes e máquinas, embarcações e trecos, além da simpatia por atividades como canoagem, camping ou qualquer coisa que se relacionasse com a Natureza ou aventura.
Perseguidor dos seus ideais, chegou a viajar como tripulante do Pilar Rossi, barco do Piquet que acompanhava o circuito de Fórmula 1, em portos como Lusben Viareggio, Valência, Barcelona e Monte Carlo e pôde assim, saciar, um tanto, sua sede de mar, que o destino acabaria por tirar-lhe.
Impetuoso, tentou evitar o roubo do seu carro, pendurando-se drasticamente por fora do veículo em movimento e colidindo com outro estacionado, o que acabou sendo-lhe fatal. Uma avaliação errônea da casualidade, pouco condizente com sua habilidade de safar-se em situações de perigo, tirou-lhe a vida.
Hoje faz dois anos deste triste episódio. Lamentavelmente, perdi meu amigo. Diz-se que os bons vão-se cedo. Não sei, já vi muita gente boa morrer velha, o que me sugere que Ranildo poderia muito bem estar vivo.
Na sua missa de corpo presente, o sacerdote, no afã de utilizá-lo como exemplo às demais pessoas para não reagirem aos eventuais assaltos a que todos estamos sujeitos, explanou demoradamente sobre as circunstâncias de como ele morreu. Poderia ter mudado o tom do discurso.
Preferiria tê-lo ouvido falar sobre a maneira como ele viveu: com liberdade, sentimento e alegria.
Saudade grande, irmão!

quinta-feira, 12 de agosto de 2010

Brasil, mostra a tua cara!


A cada década, o país procura fazer um auto-retrato da sua realidade, promovendo o escaneamento do seu território e da situação dos seus habitantes, através de um censo demográfico, valendo-se para tanto, dos trabalhos do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE.
Desta vez, na sua 12ª edição, a coleta de informações se dará com o emprego de computadores de mão, utilizados por cada um dos 220 mil recenseadores, que deverão visitar cerca de 58 milhões de domicílios, em 5565 municípios, a um custo de R$ 1,4 bilhão. A informatização do sistema promete mais agilidade na compilação dos dados e divulgação dos resultados.
Apesar do orçamento altíssimo, o serviço se prestará para que as políticas públicas possam ser mais bem direcionadas, que recursos governamentais sejam alocados com maior eficiência e que a população se beneficie das conclusões, que indicarão suas mais reais e prementes necessidades.
Sabe-se dos proveitos oriundos de uma ação como esta. A se lamentar, entretanto, que a nação continue utilizando-se de diretrizes equivocadas a um preço tão elevado, para obter, em largos espaços de tempo, o que poderia possuir cotidianamente, apenas usando os atuais meios tecnológicos de comunicação disponíveis.
O que falta ao Brasil é coesão. Organismos públicos agem com uma prejudicial independência, com um mínimo de, em raríssimas exceções, interação com outros. Não existe uma mútua colaboração entre repartições, em toda e qualquer esfera. Ministérios, estados e municípios disputam entre si dotações, empreendimentos e poder, tal como abutres ávidos por carniça.
Senão, vejamos: a receita federal dispõe das declarações de renda dos seus cadastrados. Os departamentos de trânsito sabem quem são os proprietários de todos os veículos licenciados da união. As juntas comerciais são detentoras dos registros de todas as empresas, em atividade ou encerradas. As instituições de atendimento, como escolas, hospitais, cartórios, casas bancárias e demais organismos públicos/privados, têm números exatos das suas solicitações. As coletorias estaduais controlam o volume de mercadorias que circulam e são comercializadas.
O que falta é um sistema de informação integrado único, que pudesse reunir todos esses elementos. Aliado a declarações da situação individual de todos os habitantes, que poderiam ser anuais (ou ter outra peridiocidade), atreladas ao número do CPF, por exemplo, seria simples e instantâneo se ter conhecimento real das circunstâncias e, portanto, todo esse aparato montado em decênios seria perfeitamente dispensável.
Inclusive porque, todos sabem quais são as urgências no Brasil. Os governantes é que insistem em fechar os olhos.
Estou farto de observar o povo engolfado na mais pura ignorância por falta de educação. De vê-lo definhar nas filas de atendimento da saúde pública. De sabê-lo maltratado nos falhos sistemas de transporte e segurança urbana. De senti-lo abandonado, desesperançoso e perdido na inatividade dos seus estadistas, que relega a juventude ao contato irretornável das drogas, a velhice à triste desassistência e ao cidadão ativo à indignidade da mendicância e à falta de oportunidades.
Triste és, em alguns aspectos, meu lindo país!

domingo, 8 de agosto de 2010

Saudade catalã...


Quijano, Cavaleiro da Triste Figura
Com Rocinante, se atreveu a cavalgar
Por La Mancha, Aragão e Catalunha
Amor, paz e justiça, encontrar

Jamais imaginou que aconteceria
Ver Dulcinea assim tão bela um dia,
Que sorridente lhe acompanharia
Nesta aventura linda d’além mar.


Desde que Clara viajou tem sido assim, esse sentimento dividido, de torcer pela permanência do seu sonho, longe de mim, mas aprendendo, crescendo e vivendo intensamente todas essas maravilhosas experiências que a acompanharão por toda a sua existência; e, ao mesmo tempo, sentindo a extrema necessidade de tê-la pertinho do meu peito, ao alcance dos meus olhos e dos meus braços, ou abraços e de poder vivenciar sua luminosa airosidade e leveza.
Ainda bem que setembro esta quase aí dobrando a esquina e vou poder, enfim, apertá-la junto a mim e sentir seu coração contra o meu.
É meu primeiro dia dos pais longe dela e toda a saudade que me perturba há quase um ano, hoje exacerbou-se.
Amo tu, nêga linda da minha vida!

Dia dos Pais


O que todo pai esperaria dos seus filhos?
Que eles fossem bons, essencialmente bons?
De almas lindas, com índoles integrais, desprovidos de toda e qualquer maldade e que apenas cultivassem o bem?
Que pudessem servir de inspiração nos nossos momentos de introspecção e de parâmetro para as ocasiões de desvanecimento, além de estímulo para a força que tanto necessitamos?
A natureza foi extremamente generosa comigo.
Feliz Dia dos Pais?
Feliz todos os dias da minha vida!

segunda-feira, 2 de agosto de 2010

Agosto

Início de semana e uma manhã super clara. Logo cedo o vento forte que sopra nesta época deu mais um daqueles seus pequenos suspiros, como se Eolo buscasse fôlego entre as rajadas, para em seguida prosseguir em sua costumeira faina de refrescar nossas vidas e interrompendo assim o farfalhar das pequeninas folhas das figueiras do quintal; também permitindo, com o maravilhoso e pausado silêncio, que se escutasse, bem ao longe, o som de uma fanfarra, com a batida de seus tambores ditando o ritmo de marcha.
Estranho... Em vinte anos morando aqui, não me recordo de ter escutado antes uma banda por estas bandas. Talvez a direção das correntes de ar, quase sempre tão imutáveis na nossa costa, houvesse sofrido uma variação hoje; ou algum acontecimento inusitado estivesse se desenrolando, sem que eu tivesse tomado conhecimento.
Nada disso: apenas uma escola do ensino fundamental ensaiando sua apresentação para a semana da pátria.
De repente, acordei.
Incrível! Já é agosto, as aulas retornaram e o segundo semestre “inicia-se”. Apenas ontem eram férias e a cidade vivia um frenesi de diversão e descompromisso. Hoje, o mesmo sol iluminará a fronte de cidadãos mais atinados, obrigatoriamente, com a sobrevivência e com um corre-corre que não consegue parar.
Os cajueiros já estão florindo e a partir de agora, com as ventanias, a meninada fará folguedos com suas pipas em batalhas encarniçadas de cerol.
E eu ficarei aguardando a primavera trazer de volta a sombra para a minha varanda.
Enquanto isso, vamos que vamos, que o fim do ano vem aí e nos apanha de calças curtas!

sábado, 31 de julho de 2010

Lei sem admoestação!


Até que ponto pode o estado influir no comportamento cultural dos seus integrantes?
Se aceita uma determinação administrativa modificar um procedimento milenar, tão inerente à condição humana, para não dizer instintivo?
Tramita, nas esferas governamentais, uma nova lei sobre a proibição de castigos corporais em menores de idade.
Educadores, psicopedagogos, sociólogos, orientadores e, principalmente, os pais, todos dentro das novas inclinações modernistas, irão se manifestar, fazendo a balança tender, assim me parece, para a intermitência do que a convivência doméstica deveria ter de mais comum: o relacionamento entre genitores e suas crias.
Na Roma antiga, apenas duas categorias podiam envergar togas: os pretores e as crianças, o que nos leva a pensar sobre a importância dada à infância, a despeito de que o chefe de família romano detivesse o pátrio poder. Podia um pai matar o próprio filho, sem que a ele fosse imputado crime algum.
Nos dias atuais, na nossa complexa sociedade contemporânea, parece tudo ser permitido aos rebentos. A palavra limite, quando se fala em educação infantil, aparentemente, foi sumaria e inapelavelmente removida dos nossos vocabulários.
Não quero aqui interceder pelos que praticam covardias contra indefesos. Mesmo porque há os que imaginam que, se pancada não resolveu, é porque foi pouco. Isso sem contar nas discrepâncias de comportamento que certas almas desvirtuadas infligem aos seus dependentes. Existe uma questão educacional profundamente arraigada na sociedade, ao menos na que pertenço: quem come do meu pirão, apanha do meu cinturão!
Não concordo, acho que não há necessidade do uso da força física e que o exemplo sempre fala mais alto.
Tenho duas filhas, de 27 e 19 anos, que respeitam as orientações de seus pais e jamais necessitei tocar em um só fio de cabelo delas; muito menos chegar a submetê-las a situações vexatórias, pois existem castigos bem piores do que algumas palmadas na bunda, podem acreditar.
Educar é uma responsabilidade que demanda muito tempo e trabalho. Se você tem disponibilidade para antever as necessidades do seu filho, certamente não vai ter problemas muito sérios com ele. É bem verdade que existem exceções: tive amigos na minha juventude que eram complicados para os seus pais, mas tornaram-se assim, acredito, por falta de investimento pessoal.
Existe, como em tudo mais na vida, um tempo certo para a atitude. Uma ação branda no instante adequado evita muitos dissabores futuros. A velha máxima de que pisada de galinha não mata pinto, parece se adequar aos demais espécimes animais.
Defendo o direito de se criar nossos filhos sem a intervenção unilateral de um aparelho que não possui meios, nem competência de fazer cumprir um preceito extravagante. Se agressão sempre foi crime, o que pretende a nova resolução? Que crianças escapem ilesas às suas imaginações fantasiosas ou a comportamentos pouco responsáveis? Tudo, como estamos cansados de saber, não pode chegar a extremos.
Se o governo não consegue orientar, acolher, prover ou educar as milhares de crianças que erram pelas ruas das cidades, abandonadas, sem perspectiva de nada ou futuro algum, vai querer interceder junto à família, a única instituição que parece funcionar nesta joça de país?
Há muito a se fazer pelos pequeninos que representam o futuro dessa nação.
Se intrometer com prescrições inócuas em áreas de difícil controle, não me parece muito inteligente.
Focos mais razoáveis, por favor, senhores legisladores!

terça-feira, 20 de julho de 2010

And now?


Por que mostrar-se estupefato, se és indigno deste sentimento?
Deixastes o tempo corroer as dobradiças e, agora,
portas postas ao solo, te assombras com a devassidão dos teus domínios?
Agistes tal sentinela atenta, enquanto solapavam as tuas muralhas.
E então te vês assim, destituído da proteção que imaginavas...
É tarde, já invadiram os teus espaços. Bem sabes que
os teus caminhos já não são mais teus, e o que é pior,
o futuro com que sonhastes, já não te pertence.

Tolice pensar na eternidade do que é tão transitório!

sábado, 17 de julho de 2010

Bendita C.N.H.

O envelope foi colocado, em algum momento, sorrateiramente sob a porta e ali ficou, destacando sua alvura contra o piso tabuado e escuro da sala.
Naturalmente que não por muito tempo: minha loura andarilha apartamentiana fatalmente o encontraria, como realmente acabou acontecendo e, contendo o grito, apressou-se em mostrar-me, embora preocupada com um pequeno rasgão na etiqueta de entrega, o que comprometeria a inviolabilidade da correspondência expressa.
Estava tudo normal com a encomenda e antevendo o conteúdo, seus olhos arregalados brilharam e dedos apressados confirmaram o ansiosamente aguardado documento..
Ali, em suas mãos, naquele diminuto pedacinho de papel, com timbres de verde esperança e as marcas da República, estava a sua carta de alforria, sua permissão para decolagem, seu estampido na linha de largada.
Lina está, finalmente, habilitada.
Não que ela seja uma apaixonada por carros e dirigir não me parece que possa ser um dos seus maiores prazeres.
É que, apesar de todas as vantagens de se morar na Praia do Futuro, como viver pertinho do mar, gozar de um relativo silêncio e ouvir a passarada o dia inteiro trocando lero-lero em trinados intermináveis, além de poder se deleitar com a visão das dunas e seus pés de muricí, a questão transporte acaba se tornando um fator por demais complicado para quem habita aqui.
O mundo jovem civilizado de Fortaleza, com seus shoppings, malls, facus, bares e baladas, fica além das elevações areníticas que delimitam o litoral leste e transpô-las, acelerando com vontade própria e poder lá de cima vislumbrar todas as possibilidades que a cidade oferece, é uma maravilha que, somente nós, os moradores cotidianamente apressados e costumeiramente indiferentes, não percebemos.
Para uma garota de dezenove anos e todos os seus sonhos e vontades é uma perspectiva bastante diferenciada. Algo como poder voar, sem depender das asas dos outros.
O direito de ir e vir é uma prerrogativa expressa na constituição. A caçula agora vai poder exercê-la com mais conforto e comodidade.
Bem-vinda ao mundo solo, meu coração!

sexta-feira, 16 de julho de 2010

Os barcos de São Francisco de Canindé.

Dos brados precursores da liberdade, aos entoados aboios da vaqueirama,
Dos berros dos vendedores ambulantes, aos clamores apaixonados dos trovadores, tudo no Ceará se ganha é no grito, é na garganta.
Daí termos tão bons cantadores e contadores; entre os maiores, senão o maior, dentre os que conheço, o autor do texto que se segue.

Contava-me na infância um veterano da guerra do Paraguai, ferido no ombro de Itororó, que, no hospital de sangue, identificava a origem dos seus companheiros de dor pelos santos que invocavam, gemendo. Quando ouvia dizer: - Ai, minha Nossa Senhora de Nazaré! Sabia tratar-se dum paraense. Se escutava: - Ai, meu Senhor do Bonfim! Era um baiano. Se outro bradava:- Salve-me a Senhora da Aparecida! Seria paulista ou mineiro do sul. E todos os cearenses, sem exceção, clamavam: - Valha-me, São Francisco das Chagas de Canindé!
Essa devoção nasceu no sertão do Ceará com a grande seca de 1792. Trouxera-a para Canindé um português vindo do Recife, o capitão Francisco Xavier de Medeiros. Favoreceu-a a pregação feita naqueles rincões pelos missionários franciscanos frei Manuel de Santa Maria e São Paulo, frei Bartolomeu e frei José de Santa Clara Monte Falco, que, de 1759 a 1800, andaram em desobriga pela então freguesia de S. José de Ribamar, que se estendia do litoral até o alto sertão, compreendendo em seus limites tanto Fortaleza como o povoado de Canindé, onde outrora se aldearam os índios desse nome. Quando acabou a Seca Grande, como foi chamada, o povo dessa localidade e suas redondezas decidiu levantar ali uma Igreja ao santo, que os consolara e salvara nas dramáticas aperturas da crise. Foi benfeitor principal das obras da construção o capitão Francisco Xavier de Medeiros.
Conta-se que o terreno escolhido para a ereção do templo se incluía na gleba da fazenda Renguengues, pertencente a três donos residentes em Pernambuco, os quais formalmente se negaram a cedê-lo por doação e mesmo por venda. Logo depois dessa negativa, adoeceu um deles, em breve falecendo. O mesmo aconteceu ao segundo daí a pouco tempo. E o terceiro, mal sentiu que também ia cair doente, prometeu ao santo, se escapasse, dar o terreno pedido. A edificação começou e prosseguiu com esmolas que vinham de toda a parte. Já estavam as torres bastante altas, quando dum dos andaimes escorregou e despencou-se um pedreiro. Ao cair, gritou por S. Francisco e logo se viu suspenso no espaço pela fralda da camisa a uma ponta de viga, o que deu tempo a ser socorrido, e toda gente do lugar presenciou.

No correr do tempo, os milagres e a fama de S. Francisco foram se espalhando pelos sertões do Ceará e de todo o Nordeste, as romarias aumentando ano a ano, o povoado tornando-se vila e cidade, as promessas multiplicando-se em proporções geométricas, os donativos crescendo, de modo que a primitiva Igreja se transformou em imponente basílica moderna e, com os óbolos dos fiéis, os frades franciscanos que regem aquele patrimônio sustentam admiráveis instituições de caridade, instrução e educação profissional da juventude sertaneja.
O cearense emigrado, aonde quer que vá, leva no coração a fé na proteção de seu grande santo, como aqueles humildes soldados feridos em defesa da honra do Império nos campos inóspitos do Paraguai. Nas selvas amazônicas, nas minas do Amapá, nos seringais do Acre, nos confins de Mato Grosso, nos cafezais do Paraná ou no asfalto da Babilônia paulista, ao sofrer qualquer golpe do destino, moral ou físico, volta-se para o miraculoso padroeiro da pequena cidade do sertão: - Valha-me S. Francisco das Chagas de Canindé. Faz-lhe a sua promessa e religiosamente a paga, seja como for. Poderá faltar a tudo, menos ao seu querido protetor celeste. Em todas as angústias e aflições, dirige-se seu pensamento para o santuário da sua terra natal: a Basílica do Pobrezinho de Assis.
Por isso, os ex-votos ricos e pobres, pintados ou esculpidos, de pau ou de pedra, de metal ou de cera, atopem os armazéns a eles destinados, anexos à Igreja. São em tamanha quantidade que seria impossível guardá-los para sempre. Por isso, todos os anos se escolhem os mais interessantes e significativos, derretendo-se os de cera para fazer velas e queimando-se os demais. Senão, no fim de dez anos, não haveria mais lugar nos depósitos por maiores que fossem.
Dentre esses ex-votos, os mais assombrosos, e esta palavra é mais do que apropriada, são uns barquinhos de 50 a 80 centímetros de comprimento, que vêm dos mais distantes igarapés da Amazônia, pelos afluentes do Rio-Mar, onde eles despejam suas águas, por ele abaixo e pelo oceano afora até as praias nordestinas, trazendo velas para serem acesas no altar do Santo ou dinheiro para missas e para suas obras de benemerência, silenciosos e fiéis mensageiros dos humildes cearenses perdidos na batalha da borracha, dentro das brenhas do Inferno Verde.
Nas suas horas de necessidade e de dor, esses cearenses fazem suas promessas a São Francisco das Chagas de Canindé e, como não dispõem de outro meio de comunicação com sua terra natal, sabendo que os ribeiros correm para os rios e os rios correm para o mar, como diz a velha canção portuguesa, constroem esses barcos, alguns até com certo gosto artístico, ornamentando-os com carinho, colocam neles ex-votos ou dinheiro, às vezes até 2 ou 3 mil cruzeiros, calafetam-nos completamente e os lançam às águas do igarapé ou do rio amazonense onde estão vivendo. Além do endereço: Para S. Francisco de Canindé, pintam em lugar visível outros letreiros neste estilo, por exemplo: Pede-se à pessoa que encontrar este barco na beira fazer o favor de pôr para o meio. Graças alcançadas deste Grande Santo, ou: Quem me encontrar parado me empurre para o meio.

Canoeiros ou pescadores que acham um desses pequenos barcos encalhado numa curva do rio ou numa coroa de areia, preso nas vegetações marginais ou enredado nos camalotes e balseiros, liberta-o e tange-o correnteza abaixo. Assim, eles navegam pelo igarapé, passam ao afluente, seguem pelo Amazonas, são lançados ao mar e as correntes oceânicas se encarregam de leva-los às praias de Tutóia, ou Amarração, do Camocim ou do Acaraú. Jangadeiros e caboclos que ali os encontram os entregam ao primeiro viandante que siga para o interior e, de mão em mão, levados por um comboieiro ou por um chofer de caminhão de boa vontade, os barcos vão ter às mãos dos frades de Canindé com sua carga intacta. A honestidade daquela pobre gente não lhe permite tocar no dinheiro do santo. E, se tocasse, decerto lhe aconteceria grande desgraça. São às dezenas os barcos dessa espécie que chegam anualmente a Canindé.
Desde longa data costumam as populações ribeirinhas do S. Francisco enviar pelas águas do rio à Lapa do S. Bom Jesus, como dizem, ao Santuário do Bom Jesus da Lapa, na Bahia, suas oferendas em dinheiro dentro de cabaças hermeticamente fechadas, com uma vela acesa em cima, que navegam de bubuia, correnteza abaixo, respeitadas por todos os pescadores e barqueiros. Mas somente praticam isso os crentes que habitam a montante da Lapa, baianos e mineiros, a viagem dessas cabaças é relativamente curta e somente fluvial, enquanto os barcos de S. Francisco das Chagas de Canindé perfazem distâncias enormes através de alguns dos maiores rios do continente, e do oceano, sendo depois conduzidos por terra a dezenas de léguas do litoral.
O fato do envio desses barcos desde os recessos da Amazônia até o sertão cearense, através de inúmeros percalços, é verdadeiramente assombroso, implica um ato extraordinário de fé primitiva, espontânea e ingênua, testemunha a existência , insuspeitada pela gente sofisticada das grandes capitais, dum outro Brasil, dum Brasil que não conhecemos, que está mesmo fora das apressadas e interesseiras cogitações dos que vivem para o futebol, o café society ou a politicagem, Brasil inteiramente à margem deste Brasil desvirtuado, cosmopolita, sem peculiaridade e sem tradição, que se tem formado no litoral e no qual vivemos. É finalmente um dos atos mais extraordinários da crença do povo nordestino nos seus santos. Acresce que os seringueiros, que não podem ou não sabem construir um desses pequenos barcos, enviam suas dádivas ao Padroeiro do Canindé sob a forma de bolas de borracha defumada, soltas também nas águas correntes, que o Amazonas despeja no Atlântico e este atira às praias, onde as pessoas do povo as apanham e mandam pelos mensageiros que encontram ao santuário sertanejo. Todos os anos os frades de Canindé, apuram algum dinheiro com a venda dessa borracha, trazida, como diria o clássico, sob los rios que vão.
Isto que aqui se narra é tão impressionante que até parece episódio da história de outras eras, dum Brasil, que não é mais deste tempo utilitário, que talvez já se esteja, por nosso mal, acabando, mas que é belo, por demais belo, assim cheio da inocente, da puríssima fé em Nosso Senhor Jesus Cristo e nos milagrosos santos da Sua Madre Igreja, sobretudo, naquele Poverello, tão suave e tão pobre, que sabia falar às aves e aos peixes, e recebia nas mãos e nos pés os mesmos estigmas rubros do seu Deus imolado pelos homens, como ele lanceado no flanco e coroado em sangue pela mesma coroa de Glória e de Martírio.


- Gustavo Barroso em À MARGEM DA HISTÓRIA DO CEARÁ, editado em 1962 pela UFC, tendo sua segunda edição, de onde foi copiado este capítulo, em 2004, sob os auspícios da FUNCET-PMF.

Gustavo Dodt Barroso, que nasceu em Fortaleza em 1888, foi advogado, político, contista, museólogo, folclorista, ensaísta, cronista, arqueólogo, memorialista e romancista. Membro da Academia Brasileira de Letras, foi o criador do Museu Histórico Nacional, em 1922, por ocasião das comemorações do Centenário da Independência, iniciativa do então presidente Epitácio Pessoa, tendo dirigido a instituição desde a fundação até a sua morte, em 1959.

quarta-feira, 14 de julho de 2010

Dois matutos e o trem.

Adoro esses "causos" populares e tenho uma afinidade cotidiana com a extinta Estrada de Ferro de Sobral: meu avô paterno foi lanterneiro da Rede Ferroviária Cearense até morrer. A estação da foto abaixo, ponto final da ferrovia rumo ao porto de Camocim, fica ao lado das docas e, do outro lado da praça, naquela casinha branca e vermelha, é onde resido, lá na terra da beleza sem fim.

Logo que a Estrada de Ferro de Sobral chegou ao Ipu, levada pelo engenheiro João Tomé de Sabóia e Silva, as ladeiras da “Mina”, que dão acesso à Ibiapaba, formigavam de serranos curiosos de ver o trem. Também do sertão de “Jaçanã” acorria gente tocada daquela curiosidade.
Dois agregados do Major José Liberato deixaram a fazenda “Bom Jesus” e foram espiá o bruto. Hora e meia antes da chegada do horário, já êles estavam na Estação, numa espera impaciente.
Quando o trem se avizinhava do “Cajueiro”, a locomotiva apitou, anunciando a aproximação.
_ Ah, bicho de berro bom! Disse um dêles. Isso sim! Isso é que eu chamo tê sustança.
Após a chegada, enquanto os passageiros desembarcavam e havia a manobra habitual, os dois vaqueiros deram largas à sua curiosidade, analisando toda aquela introsa e fazendo os mais picarescos comentários:
_ Home, mas me diga uma coisa: que idade terá esse animal?
_ Home, mas êle é mêrmo um sendero de força! Cumo é que êsse dimunho pode com tanto carro na carrêra?
_ ‘Tão dizendo que êle saiu hoje do Camocim e já fêz trinta e seis légua. Vá ter fôrgo assim no inferno!
_ Mas, cumpade, êle já ‘tá suado. Espie: ‘tá pingando suó daquele cano. Ele ‘tá mas é afrontado...
_ Lá o quê! O bicho já veve seleiro. Isso já ‘tá aquilotado. Se êle agora estralasse nas junta, ia batê de novo no Camocim.
_ Home, isso é que é: não tem de botá cangaia, não tem que dá iágua, não tem de deixá no piadô... Tem uma coisa: se êsse dimunho enfiá o dedo no cadaço da celouro, não se aproveita nem o couro de quem andá dentro...
O maquinista, que vinha apreciando o diálogo, quis espantá-los e puxou a corda do apito. Com o susto, os vaqueiros pularam espavoridos, um de barbicacho enfiado e o outro empurrando o chapéu-de-couro, como arma de defesa. E um dêles falou:
_ Cumpade Reimundo, vambora que o bicho ‘tá nos estranhando...!


- Transcrito do livro Cantadores, de Leonardo Mota. Editado pela primeira vez em 1921, prefaciado na sua terceira edição (Imprensa Universitária do Ceará/1960) pelo igualmente genial Luís da Câmara Cascudo.
Foi mantida a grafia original.

quarta-feira, 7 de julho de 2010

Pro dia nascer feliz...

"O tempo não para", entoam pessoas a bela canção do grande poeta.
Mas, no dito popular, o tempo não corre, voa.
A verdade, pasmem, é que hoje faz vinte anos que Cazuza se foi.
E pra homenageá-lo, resolví postar um texto escrito há tempos atrás.
Meu co-cunhado recebeu, via net, o texto de uma psicóloga, que transcrevo logo abaixo. Como fã incondicional de Cazuza, meu pediu para escrever uma resposta, mostrando que uma coisa é uma coisa e outra...
Foi o que fiz (ou pelo menos tentei).

Uma psicóloga que assistiu o filme Cazuza escreveu o seguinte
texto:
A VERDADE SOBRE CAZUZA.
"Fui ver o filme Cazuza há alguns dias e me deparei com uma
coisa estarrecedora: as pessoas estão cultivando ídolos errados.
Como podemos cultivar um ídolo como Cazuza? Concordo que suas
letras são muito tocantes, mas reverenciar um marginal como ele, é,
no mínimo, inadmissível.
Marginal, sim, pois Cazuza foi uma pessoa que viveu à margem
da sociedade, pelo menos uma sociedade que tentamos construir (ao
menos eu) com conceitos de certo e errado. No filme, vi um rapaz
mimado, filhinho de Papai que nunca precisou trabalhar para
conseguir nada, já tinha tudo nas mãos. A mãe vivia para satisfazer
as suas vontades e loucuras. O pai preferiu se afastar das suas
responsabilidades e deixou a vida correr solta. São esses pais que
devemos ter como exemplo?
Cazuza só começou a gravar porque o pai era diretor de uma
grande gravadora. Existem vários talentos que não são revelados por
falta de oportunidade ou por não terem algum conhecido importante.
Cazuza era um traficante, como sua mãe revela no livro,
admitiu que ele trouxe drogas da Inglaterra, um verdadeiro
criminoso. Concordo com o juiz Siro Darlan quando ele diz que a
única diferença entre Cazuza e Fernandinho Beira-Mar é que um
nasceu na zona sul e outro não.
Fiquei horrorizada com o culto que fizeram a esse rapaz,
principalmente por minha filha adolescente ter visto o filme.
Precisei conversar muito para que ela não começasse a pensar que
usar drogas, participar de bacanais, beber até cair e outras coisas
fossem certas, já que foi isso que o filme mostrou.
Por que não são feitos filmes de pessoas realmente
importantes que tenham algo de bom para essa juventude já tão
transviada? Será que ser correto não dá Ibope, não rende
bilheteria? Como ensina o comercial da Fiat, precisamos rever
nossos conceitos, só assim teremos um mundo melhor.
Devo lembrar aos pais que a morte de Cazuza foi conseqüência
da educação errônea a que foi submetido. Será que Cazuza teria
morrido do mesmo jeito se tivesse tido pais que dissessem NÃO
quando necessário?
LEMBREM-SE: DIZER "NÃO" É A PROVA MAIS DIFÍCIL DE AMOR.
Não deixem seus filhos à revelia para que não precisem se
arrepender mais tarde. A principal função dos pais é educar. Não se
preocupem em ser amigo de seus filhos. Eduque-os e mais tarde eles
verão que você foi a pessoa que mais os amou e foi, é, e sempre
será, o seu melhor amigo, pois amigo não diz SIM sempre."

Karla Christine - Psicóloga Clínica




¨O olho é apenas um vértice de angulo onde convergem as multidões sensoriais da estética.
Por si só o olho vê o que existe na dimensionalidade relativa ao observador.
As dimensões variam e se ampliam com a sensibilidade de quem olha¨.
(Câmara Cascudo)


Não gostaria de incorrer no mesmo desastroso erro de interpretação ao qual a psicóloga clínica Karla Christine se submeteu ao analisar, de forma resumidíssima e com uma parcialidade assustadora, vida e obra do grande poeta, cantor e compositor carioca Agenor Miranda de Araújo Netto, no seu malfadado texto ¨A verdade sobre Cazuza¨.

A espécie humana coexiste em universos cujas dimensões somente conseguem ser quantificadas através da tradução dos seus próprios sentidos. Por isso as escalas que determinam as diferenças nas nossas diversas realidades, se fazem através das comparações de valores absolutos e antagônicos, da enunciação dos contrastes. É assim entre o claro e o escuro; ou com o grande e o pequeno; longe ou perto; certo ou errado; verdade ou mentira. Tudo é tão relativo! Com minha estatura mediana, poderia, entre pigmeus, ser chamado de gigante; já em uma equipe de basquete da NBA, por exemplo, não passo de um nanico.

A fábula do cego de nascença que, curioso em conhecer a forma de um elefante e colocado ao lado do animal, se abraçou a uma de suas pernas, exclamando com credulidade - ¨o elefante se parece com um coqueiro!¨, exemplifica como uma visão limitada da realidade pode induzir uma pessoa, ainda que bem intencionada, ao erro.

Mister se faz investigar a situação a ser julgada, com sobriedade, sem o ranço cultural que cada um de nós possui individualmente, para somente então emitirmos nossa opinião, na medida do possível, desprovida de tendenciamentos de qualquer espécie: políticos, religiosos, antropológicos, sociológicos... Sem sectarismos e/ou preconceitos.

Ao contrário da psicóloga, não assisti ao filme O Tempo Não Pára (dirigido por Sandra Werneck e Walter Carvalho), elogiado pela forma como conseguiu retratar com fidelidade a realidade do artista. Sequer li o livro escrito por sua mãe, coisa que a cronista afirma ter feito. Não fosse a minha estupenda admiração pelo trabalho maravilhoso de Cazuza, desconfiaria que a psicóloga pudesse ser mais fã dele do que eu.

Na minha casa – e na de milhões de brasileiros – existem algumas gravações dele. A mim não interessa que ele tivesse sido chamado de ladrão, de bicha ou maconheiro. Mais que o nome do santo, o que me importa é o milagre! Suas músicas e seus poemas falam por si só. Cazuza é o Noel dos anos 80 e como ele, se tornou vítima da própria genialidade e suas conseqüências nefastas; modificaram-se, como o tempo requer, apenas os agentes: ao invés do álcool e tuberculose, que mataram o poeta da Vila, Cazuza sucumbiu às drogas e à aids.

Entretanto, transgredir contra o establishment não foi privilégio do Cazuza. Os gênios, com o dom que a natureza os dotou, diferem da imensa maioria dos mortais. Se foram favorecidos pela capacidade natural de criar coisas diferentes, por que deveriam agir com a normalidade do povo que ¨tenta construir uma sociedade com conceitos de certo e errado¨?

Certo, D. Karla (na minha opinião, posso estar errado!), seria a sra. se inteirar sobre a veracidade dos acontecimentos.

Cazuza foi, indubitavelmente, um dos maiores poetas musicistas que estas plagas já produziram. Apesar de já versificar desde os dezessete anos, somente começou a gravar um ano após se juntar ao Barão Vermelho – o primeiro disco saiu em 1982. Ezequiel Neves, produtor da Som Livre, a gravadora onde o seu genitor era o presidente, foi quem primeiro conheceu o trabalho do grupo e o apresentou ao Guto Graça Mello, diretor artístico da empresa, que, obviamente, ficou impressionado com a música deles. Seu pai, a princípio, não concordou com a idéia: tinha receio dos comentários por o cantor/compositor da banda ser seu filho (a menção da psicóloga, inclusive, mostra que em parte ele tinha razão); mas acabou cedendo ao bom senso. Mesmo porque o Barão Vermelho já tinha propostas de outras gravadoras. A Som Livre faturou muito com a decisão acertada do Sr. João Araújo.

Acredito que o raro talento de Cazuza forçosamente o impeliria ao estrelato. O fato de sua mãe ser cantora, com a família convivendo em um ambiente musical e seu pai ser presidente da maior gravadora do país, na época, aliado a realidade de sua vida cotidiana, convivendo, dentro da sua própria residência, inclusive, com a nata da produção musical da nação e seus artistas, apenas facilitou o inevitável. Contra o enfatismo da psicóloga, pode-se observar que existem diversos presidentes de gravadoras cujos filhos não sabem poetar, sequer solfejar do-re-mi-fá. O sucesso, como é sabido, vem do talento e através do povo e nunca é produto de indicações ou nepotismo. Elementar, minha cara Karla!

Quanto ao seu desempenho profissional, Cazuza, em nove anos de trabalho, gravou ao todo onze discos, sendo que, na sua carreira solo foram cinco selos durante quatro anos. Media superior à de artistas tarimbados, que conseguem fazer um lançamento anual, quando tanto. É autor de mais de duzentas composições – algumas inesquecíveis. Apresentou-se durante anos em milhares de shows, no Brasil e no exterior. Esse é o perfil de uma pessoa que ¨nunca precisou trabalhar para conseguir nada, que tinha tudo nas mãos¨?

A despeito de, na sua desregrada vida, Cazuza ter se envolvido em algumas ocorrências policiais por porte ilegal de droga - para uso pessoal, o que hoje já não é crime - não me consta que ele fosse um criminoso ou marginal, como adjetivado sem parcimônia pela escritora do texto, dilatando propositalmente o sentido das palavras para adaptá-las a seu objetivo. Seria criminosa uma criatura que não matou, não roubou, não se utilizou de atos ilícitos ou não causou prejuízos a outrem? E marginal (à margem, como ela mesma tenta explicar) uma figura que se inseriu na historia para não mais dela sair, que representou uma geração inteira, que é lembrado em sons, lirismos, filmes, livros e até em textos de certas pessoas com falsos moralismos e sem discernimento?

Quanto ao infeliz comentário do juiz Siro Darlan, é preciso que se diga: gato que nasce dentro do forno, não é pão: é gato! Cazuza nasceu em meio à gente de caráter, mas sua genialidade não se deve a este simples detalhe. Além do que, existe uma diferença abissal entre Cazuza e o famigerado bandido Fernandinho Beira-Mar, este sim, um CRIMINOSO com todas as letras maiúsculas, capaz de matar um semelhante, com requintes de perversidade até, só para, como se diz popularmente, ver a queda. Fernandinho poderia reencarnar, se isso fosse possível, inúmeras vezes e jamais conseguiria, com o seu espírito desvirtuado, ter uma fração, mínima que fosse, da sensibilidade e do talento de Cazuza, o poeta do seu tempo.

Tomara que jamais necessite eu ser julgado por um magistrado ¨tão criterioso e de opinião tão abalizada¨ quanto o meritíssimo juiz acima citado.

Cazuza foi, importante se faz lembrar aos mais esquecidos, a primeira figura publica do país a admitir que era soropositivo, um tremendo tabú para a época, tirando do ostracismo um enorme grupo de doentes que se enfurnavam em suas tocas com medo de mostrar a cara. E acelerando, com sua ousadia, o enfoque sobre o terrível problema social que a aids acabaria se tornando. Que imensa coragem se mostrar inteiro e depauperado à sanha dos reacionários, naquela famosa capa de Veja!

Faltou criteriologia à autora para analisar a película ¨assustadora¨ como se deveria: o exemplo que Cazuza nos deixou, principalmente, é sua excepcional e monumental criação. Seus erros e devaneios, entretanto, também nos servem de modelo, no sentido que podemos conhecer o outro lado e realizar nossas comparações. Há de se levar em consideração a localização espacial dos eventos: o comportamento rebelde de se usar drogas e cometer pequenos delitos, que naquela década causavam espanto ao tradicionalistas, hoje é pratica corriqueira entre crianças de dez ou doze anos. Mudaram os tempos; somente a psicóloga, que continua usando termos como ¨essa juventude tão transviada¨, não notou.

Não consegui definir ao certo o que levou D. Karla Christine a pronunciamento tão radical, não condizente à analítica isenta que sua profissão exige. O texto é carregado de estarrecimentos, inadmissibilidades, conceitos, verdades, afirmações, horrorizamentos, receios, conseqüências. Sua linguagem redundante me faz desconfiar de um sentimento oculto, que HG Wells expõe muito bem, na sua famosa citação: ¨A indignação diante do pecado alheio não passa de inveja com cara de beatitude¨.

Decerto, mais do que qualquer outro motivo, a celeuma causada pela psicóloga se deve, ao meu ver, mais ao protecionismo exagerado dedicado à sua influenciável cria que, incapaz de diferenciar fantasia da realidade, não pode, sob nenhuma hipótese, assistir a um filme do Drácula, sob o risco de virar vampira. Ou ver um desenho do Srek sem sentir o impulso incontrolável de se tornar Fiona. Vai ser preciso muita conversa da psicóloga para mostrar à sua filha adolescente que uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa... como diria um queridíssimo conhecido meu.

terça-feira, 6 de julho de 2010

FLYING DUTCHMAN ESTONTEANTE


A coisa terminou um tanto complicada para mim e para a seleção brasileira, no final da manhã, início de tarde, daquela sexta-feira fatídica.
E não era pra menos. Você se ver obrigado a entrar em campo, com uma responsabilidade daquela, logo após acordar, até mesmo um tanto bocejante... E, ainda mais de ressaca: quinta à noite sempre tem caranguejo na minha cidade e o delicioso crustáceo decápode braquiúro combina com cerveja, muita cerveja.
Deveria haver uma lei universal que instituísse a prática futebolística, assim, algo em torno do crepúsculo vespertino, quando ainda há luz suficiente para um bom jogo e o poder do Sol vai se esvaecendo, tornando possível o contato entre um atleta mal preparado e sua cabeça inchada, com o astro principal do nosso sistema planetário e sua capacidade de provocar enxaquecas.
Às onze horas ao raiar do dia, francamente, não há a menor condição!
Talvez isso explique, em parte, a minha ineficiência para a peleja e a inépcia das estrelas do escrete canarinho, que acabaram provocando a nossa eliminação nestas quartas-de-final da Copa da África do Sul.
Mas não foi por falta de aplicação, garanto.
O fato de ser mais um técnico, assim como todos os demais brasileiros, não me impossibilita de forma alguma, através da minha versatilidade como jogador, de atuar na cancha de qualquer praça esportiva. Posso me transformar em um coringa para os momentos mais tensos e é por isso que pulo para cabecear um cruzamento nas cidadelas adversárias, projetando ao máximo o pescoço e tenho que em seguida voltar feito um louco para ajudar na marcação; roubo bolas e as distribuo, ao mesmo tempo em que, sob a minha meta, me estico em defesas mirabolantes; bato escanteios e corro para receber a pelota e grito com os meus companheiros, exigindo a mesma garra e ainda determino, com meus fenomenais lançamentos, o melhor lado do campo para o ataque.
E vocês vão ter de convir comigo que, fazer tudo isso sentado em uma mesa de bar, é tarefa para poucos.
Ao término da contenda estou exaurido e pior, não conto, ao contrário dos profissionais muitíssimo bem remunerados do meu time, com vestiários adequados, cremes e terapêuticos específicos ou médicos e massagistas especializados. E nem tenho a capacidade de professar as desculpas amarelas que eles possuem, tentando explicar o inexplicável.
Não fosse a hidratação constante, gelada, estupidamente gelada, a que me submeto durante as partidas, poderia muito bem sair da Cabana da Negona, palco das minhas alegrias neste campeonato e desta tristeza final de eliminado, numa ambulância.
Não é à toa que, por precaução, meu carro é branco.
O que não impediu, entretanto, devida à velocidade excessivamente impressa pelo carrossel holandês, que eu saísse de lá, completamente zonzo.
É, esse negócio de laranja mecânica em quantidade exagerada, nunca fez muito bem ao meu sistema gastrointestinal.

O tempo e o filósofo!

Digno de reflexão, o texto abaixo transcrito, terceiro capítulo de "Sobre a brevidade da vida", é de autoria de Sêneca e foi criado provavelmente no ano 56 da nossa era. Dirigia-se ao seu sôgro, Pompeius Paulinus, com o intuito de fazê-lo desistir de assumir a praefectura annonae romana e se dedicar à filosofia. Delicie-se.



Rubens - Museo del Prado - Morte de Seneca - 1615


Todos os espíritos que alguma vez brilharam consentirão neste único ponto: jamais se cansarão de se espantar com a cegueira das mentes humanas. Não se suporta que as propriedades sejam invadidas por ninguém, e, se houver uma pequena discórdia quanto à medida de seus limites, os homens recorrem a pedras e armas; no entanto, permitem que outros se intrometam em suas vidas, a ponto de eles próprios induzirem seus futuros possessores; não se encontra ninguém que queira dividir seu dinheiro, mas a vida, entre quantos cada um a distribui! São avaros em preservar seu patrimônio, enquanto, quando se trata de desperdiçar o tempo, são muito pródigos com relação à única coisa em que a avareza é justificada. Por isso, agrada-me interrogar um qualquer, dentre a multidão dos mais velhos: “Vemos que chegaste ao fim da vida, contas já cem ou mais anos. Vamos! Faz o cômputo de tua existência. Calcula quanto deste tempo credor, amante, superior ou cliente, te subtraiu e quanto ainda as querelas conjugais, as reprimendas aos escravos, as atarefadas perambulações pela cidade; acrescenta as doenças que nós próprios nos causamos e também todo o tempo perdido: verás que tens menos anos de vida do que contas. Faz um esforço de memória: quando tiveste uma resolução seguida? Quão poucas vezes um dia qualquer decorreu como planejaras!? Quando empregaste teu tempo contigo mesmo? Quando mantiveste a aparência imperturbável, o ânimo intrépido? Quantas obras fizeste para ti próprio? Quantos não terão esbanjado tua vida, sem que percebesses o que estava perdendo; o quanto de tua vida não subtraíram sofrimentos desnecessários, tolos contentamentos, ávidas paixões, inúteis conversações, e quão pouco não te restou do que era teu! Compreendes que morres prematuramente”. Qual é pois o motivo? Vivestes como se fôsseis viver para sempre, nunca vos ocorreu que sois frágeis, não notais quanto tempo já passou; vós o perdeis, como se ele fosse farto e abundante, ao passo que aquele dia que é dado ao serviço de outro homem ou outra coisa seja o último. Como mortais, vos aterrorizais de tudo, mas desejas tudo como se fôsseis imortais. Ouvirás muitos dizerem: “Aos cinqüenta anos me refugiarei no ócio, aos sessenta estarei livre dos meus encargos”. E que fiador tens de uma vida tão longa? E quem garantirá que tudo irá conforme planejas? Não te envergonhas de reservar para ti apenas as sobras da vida e destinar à meditação somente à idade que já não serve para mais nada? Quão tarde começas a viver, quando já é hora de deixar de fazê-lo. Que negligência tão louca a dos mortais, de adiar para o qüinquagésimo ou sexagésimo ano os prudentes juízos, e a partir deste ponto, ao qual poucos chegaram, querer começar a viver!

terça-feira, 29 de junho de 2010

Cartilha automobilística (ou o ABC do comprador de carros)



Não foi exatamente a cor berrante – RED Citric, como informou depois o vendedor - que chamou a sua atenção. Já tinha visto aquele crossover da KIA em revistas especializadas e agora, bem de frente aos olhos, era realmente lindo o carro. E imaginou, em um desses momentos de puro delírio consumista, a possibilidade fantástica de trocar o seu antigo, mas valoroso - diga-se de passagem - JPX Montez, motor OHC turbo diesel, da cor DUT branco, exatamente como deveria ser, acreditava até então, a pintura de todos os veículos que rodam sob o tórrido e inclemente sol da sua cidade.
Por isso resolveu adentrar a revendedora, aparentemente... como quem está podendo.
Pensara inicialmente em algo mais acessível à sua dura realidade. Percorrera revendas autorizadas, como a CDA da Fiat ou mesmo a Hyundai DHZ, mas os modelos que encontrou não o agradaram; ou estavam muito acima das suas parcas possibilidades. Chegou inclusive a procurar uma opção mais viável, dentro do mercado de usados. Peregrinou até a T&T Veículos, depois foi à FJA Pitombeira; deu uma olhada na NEW CAR e também na B&M Veicular e MCK Autos, indo a ALL CAR Comercial e em todos esses agentes chegou a encontrar automóveis interessantes, é bem verdade; e ainda que entusiasmando-se com um antigo BMW 525 ou até um conversível Mercedes 230 CLK , além de um Puma GTB, sonho de adolescência não realizado, concientizou-se da necessidade premente de um zero quilômetro.
Estacionou o valente utilitário sob os olhares insolentes dos atendentes de plantão, desconfiados da baixa capacidade de caixa que o seu decrépito carango inspirava. Mas nem ligou. Já se habituara aos efeitos que a visão do velho 4X4 costumeiramente provocava.
– Bando de babacas, não sabem nem o que é carro - conjeturou consigo mesmo.
Aproximou-se daquele sonho sobre rodas, incapaz de sustentar o queixo por seus próprios meios e achava-se prestes a babar a lataria, quando o vendedor, já quase o interpelando, foi bruscamente interrompido com o clássico “estou só dando uma olhadinha!” (já que era a pura verdade).
Ainda assim, movido não se sabe se por uma pertinência profissional mais aguçada ou mesmo pela ociosidade a que os comissionados estão sujeitos nestes tempos tão bicudos, o vendedor sugeriu-lhe dar uma examinada num outro sport utility, mais condizente com o espírito OFF Road a que o seu JEEP remetia.
Aproximou-o de um enorme SUV e começou a enumerar-lhe as qualidades inequívocas que o fabricante oferecia: motor Lambda II 3.5 V6 Dual CVVt, com 285 CV, muito mais potente, com mais torque e economia de combustível e um novo câmbio automático com SHIFT TRONIX de seis velocidades, que proporciona trocas de marcha imperceptíveis. Tração AWD 4X4 integral controlada eletronicamente. Sistema de controle de tração ESP com TCS. Freios ABS com EBD e BAS. Dotado de 10 AIR BAGS, frontais, laterais e de cortina. Compartimento refrigerado, o moderno COOL BOX, para 5 ou 7 lugares. Sistema de partida sem chave, com botão START/STOP e sensor de proximidade. Conjunto de som JBL com 6 alto-falantes, comandos no volante e disqueteira para 6 CDS, com entrada USB e interface de controle para iPOD e ainda bancos elétricos de couro, piloto automático Cruise Control e teto solar panorâmico, além de câmera de ré com monitor LCD de 3,5” no retrovisor interno.
Sentiu-se até inibido com o excesso de oferta e voltando-se ao motivo original da sua apreciação, manifestou-se resolutamente ao vendedor: - SOUL mais aquele modelo ali, se é que você me entende!
Contudo, informado do preço do seu objeto de desejo, dirigiu-se cabisbaixo à porta de saída, balbuciando raivosamente a senha dos desvalidos: PQP!

segunda-feira, 28 de junho de 2010

Maciço, amor antigo!


Era sempre muito cedo, escuro ainda, quando vinham balançar minha pequena carcaça, avisando que era chegada a hora.
Preguiçosamente levantava-me e no imenso corredor do casarão já sentia o inconfundível aroma de café quente, que minha adorável avó Laís laboriosamente preparava todos os dias.
Da garagem, “esquentando o motor”, Ricardo, nosso rotineiro chauffeur, bradava que estava tudo pronto.
E lá íamos nós.
Não me recordo exatamente porque, sequer consigo explicar como, entre tantos netos, normalmente eu era o chamado. Contudo, mais do que parecer um feito casual do destino, essa singularidade marcou indelevelmente a minha existência.. E criou uma fonte de doces recordações, que quando em vez assoma meu espírito e de onde posso sorver parte da minha infância feliz.
Zé Mendonça, meu avô querido, possuía, no topo da serra, em Pernambuquinho - antigo Rio das Cobras - um pequeno sítio de 3 hectares, o Nó Seco. Ocasionalmente, sob o pretexto de buscar algumas frutas, pegava sua reluzente Rural Willys, pneus cidade-campo com faixas brancas, seu filho mais novo como motorista e, como companhia, seu neto mais, digamos, “gente fina”.

Gostava de madrugar na estrada e lembro-me que o frio atacava minhas magras costelas. O Sol só dava o ar da sua graça, timidamente, bem depois do sugestivamente denominado Alvorada Country Clube, já pra lá da Monguba ou Pacatuba. Podia-se, então, observar a exuberante vegetação montanhosa da Aratanha, que se apresentava com um verde dominante, salpicado de, por vezes, pontos de amarelo ou rosa da floração dos paus d’arco e, mais espaçadamente, o branco das barrigudas. Sinal de próximo bom inverno, dizia o velho, com a experiência de quem conhecia aquelas paragens com a intimidade de muitos anos.
Dois aspectos paralelos ao caminho atraiam minha atenção e enorme curiosidade: a linha férrea, sempre presente, por vezes à margem da rodovia ou, em outras ocasiões, cruzando-a; pela importância da própria, pode-se dizer que, na realidade, a estrada é que a acompanhava. E também, a marcante presença dos tubulões metálicos que traziam a água de Acarape, naquela época, o único reservatório que abastecia a antigamente diminuta cidade de Fortaleza.

Após Baturité, cidade natal do homem, subir o Maciço quando a força do astro-rei ainda não conseguia se pronunciar, somente agravava a falta de aquecimento na caminhonete. E, dali por diante, não existia qualquer espécie de pavimento. A estrada era por demais estreita, não permitindo na quase totalidade do percurso a passagem simultânea de dois veículos e as rodas do carro beirava assustadoramente os altos abismos. Quando chovia ou o piso ainda se encontrava úmido da noite anterior, a situação se agravava, pois a subida da serra é quase toda argila, mica e barro de louça. Entretanto, nada que o Overland 4 x 4 e o trabalho do primoroso condutor não pudessem resolver, apesar das freqüentes barreiras “derretidas” no caminho. E tome balanço!

Lá em cima não havia ainda luz elétrica e as casinhas expeliam, pitorescamente, através das suas chaminés, torvelinhos de fumaça. Os habitantes eram ingênuos e o tráfego de veículos tão ocasional que, invariavelmente, os transeuntes à beira do caminho paravam para observar a nossa passagem. E, a baixa velocidade da condução permitia se ouvir os galos, repetidamente, cantando espavoridos, como se alertassem uns aos outros à invasão dos seus bucólicos ambientes. Com certeza absoluta, aquele era o lugar onde existiam mais galos no mundo.
Costumava marcar nossa marcha de subida não pelos quilômetros rodados e sim pelos sítios existentes, enormes àquela época, com casas suntuosas e suas capoeiras, ou faxinas, herança dos áureos tempos dos cafezais, plantados à sombra das ingazeiras e responsáveis pela pompa e abundância que marcou um passado glorioso do maciço. Numa sucessão familiar, desfilavam ante os meus olhos, como em um filme, o Tijuca, primeira grande propriedade da serra, ainda no século XVIII e onde floresceram os primeiros pés de café vindos da França, via Pará; o Labirinto, com seus canaviais sempre envoltos pelas brumas nevoentas da aurora; o Brejo, logo após o Uirapurú e a entrada da Gruta; o Venezuela, antigo Cafundó, onde o Conde D’Eu e a sua comitiva da Expedição Científica ficaram hospedados; o Macapá, que um dia foi hotel e cassino; o Humaitá; o Monte-Flôr ; o Rio Negro; o Cana-Brava e seu lindo laguinho “arrodeado” de palmeiras e em seguida, o Logradouro com o seu charme fascinante, inalterado até hoje; o Uruguaiana, tão grande nos tempos anteriores, que abrangia serra, quebrada e sertão; logo depois, o Baixa Fresca, que foi do meu bisavô e onde meu avô morou até certa idade e onde existiam palmeiras imperiais altíssimas, “que eu ajudei a plantar”, como dizia o velho, com enlevo e emoção indisfarçáveis. Quantas belas lembranças...

O cheiro do mato, odores marcantes da espessa Mata Atlântica, invadia o interior do veículo com a mesma intensidade dos sons da passarada ou os latidos dos assustados cães e quanto maior fosse a altitude alcançada, menor a arrepiante temperatura; e aumentava a diversidade das cores, a beleza das paisagens e também a minha grande expectativa e ansiedade pela nossa chegada. Depois da Forquilha avistava-se, bem ao lado da, naquela altura, vereda, a casa branca da fazenda Floresta, de “Rodrigo Argolo Caracas”, como convenientemente frisado: pronto! Apenas virando à esquerda e, de longe se avistava a propriedade.
Na beira da estradinha que atravessa o terreno, do lado oposto à casa do morador, a única existente, ficava a centenária jaqueira, onde, à sombra da sua frondosa copa se estacionava o utilitário, para se embarcar os produtos do sítio: chuchus, laranjas, abacates, tangerinas, jacas, ocasionalmente urucum ou café e plantas ornamentais, como samambaias ou bromélias e as muitas flores, sempre-vivas e copos de leite. Além de bananas, muitas bananas, milhares de bananas.

Se a viagem acontecesse em um domingo, poderíamos, antes de nos dirigirmos ao terreno e passando ao largo de Guaramiranga, irmos até a movimentada feira de Pacotí, comprar “carne de vaca” ou uns taludos pernis de porco, como também outras variedades de frutas, especiarias, rapaduras, batidas e alfenins. Ou ainda ferramentas, insumos, sementes.
Ao burburinho de barraqueiros, mascates e fregueses, numa algazarra extravagante, misturavam-se os urros de animais amarrados e dispostos à venda, com a zoada dos inúmeros caminhões bananeiros e paus-de-arara apinhados de matutos.

Passando obrigatoriamente na bodega do Chico Birim, para tomar uma Brahma (tinha de ser Brahma) e relembrar com o antigo amigo feitos do arco da velha, ali meu avô desfiava causos, alguns bem cabeludos. Não se discutia de forma alguma a veracidade das escabrosas estórias; a dúvida era somente quanto ao ano do acontecido, se em 41... Ou teria sido em 36? Para mim pouco importava, eram maravilhosas de qualquer maneira. Encostado àqueles antigos balcões de madeira enegrecidos, quase sempre lambuzados por banha de porco salgada, escutava atento e encantadamente as conversas, enquanto minhas narinas percebiam as fortes emanações de peixe seco, fumo de rolo e cachaça, que inundavam o ambiente.

Contudo, não durava muito o nosso dia de aventuras: a inquietude do meu avô fazia-o estar sempre com pressa e regressávamos para casa ainda a tempo de “pegar” o almoço, que via de regra, nem era servido tão tarde assim.
Viajar é sempre muito bom. Acompanhado por pessoas queridas, melhor ainda. Para lugares que você ama e que povoam suas memórias, então, criam-se, indefectivelmente, momentos mágicos, inesquecíveis.

Ainda hoje, quando subo a serra, recordo do ronco brabo daqueles seis cilindros, da intrepidez daquelas empreitadas, do arrojo e coragem com que nos jogávamos naquelas ladeiras e na satisfação de vencê-las, com sobriedade. Muito da fascinação que sinto por máquinas, devo àquelas duas figuras, que faziam o difícil se tornar fácil, com uma tranqüilidade desconcertante. Poucas vezes me senti tão seguro, quanto no banco traseiro daquela Rural.
Alguns anos depois, já habilitado, tornei-me, com um orgulho que não me larga, o motorista que levava o Zé Mendonça para suas rápidas andanças nos territórios que outrora lhe pertenceu. Foram tantas e esplêndidas viagens, subidas e descidas, frio, calor, cansaço e admiração. Aprendi, definitivamente, a apreciar estradas, motores e lugares. E tive o melhor professor que alguém poderia ter.
Todas estas outras magníficas recordações dariam, certamente, para escrever um livro... Mas isto já é outra estória!!!