quarta-feira, 14 de julho de 2010

Dois matutos e o trem.

Adoro esses "causos" populares e tenho uma afinidade cotidiana com a extinta Estrada de Ferro de Sobral: meu avô paterno foi lanterneiro da Rede Ferroviária Cearense até morrer. A estação da foto abaixo, ponto final da ferrovia rumo ao porto de Camocim, fica ao lado das docas e, do outro lado da praça, naquela casinha branca e vermelha, é onde resido, lá na terra da beleza sem fim.

Logo que a Estrada de Ferro de Sobral chegou ao Ipu, levada pelo engenheiro João Tomé de Sabóia e Silva, as ladeiras da “Mina”, que dão acesso à Ibiapaba, formigavam de serranos curiosos de ver o trem. Também do sertão de “Jaçanã” acorria gente tocada daquela curiosidade.
Dois agregados do Major José Liberato deixaram a fazenda “Bom Jesus” e foram espiá o bruto. Hora e meia antes da chegada do horário, já êles estavam na Estação, numa espera impaciente.
Quando o trem se avizinhava do “Cajueiro”, a locomotiva apitou, anunciando a aproximação.
_ Ah, bicho de berro bom! Disse um dêles. Isso sim! Isso é que eu chamo tê sustança.
Após a chegada, enquanto os passageiros desembarcavam e havia a manobra habitual, os dois vaqueiros deram largas à sua curiosidade, analisando toda aquela introsa e fazendo os mais picarescos comentários:
_ Home, mas me diga uma coisa: que idade terá esse animal?
_ Home, mas êle é mêrmo um sendero de força! Cumo é que êsse dimunho pode com tanto carro na carrêra?
_ ‘Tão dizendo que êle saiu hoje do Camocim e já fêz trinta e seis légua. Vá ter fôrgo assim no inferno!
_ Mas, cumpade, êle já ‘tá suado. Espie: ‘tá pingando suó daquele cano. Ele ‘tá mas é afrontado...
_ Lá o quê! O bicho já veve seleiro. Isso já ‘tá aquilotado. Se êle agora estralasse nas junta, ia batê de novo no Camocim.
_ Home, isso é que é: não tem de botá cangaia, não tem que dá iágua, não tem de deixá no piadô... Tem uma coisa: se êsse dimunho enfiá o dedo no cadaço da celouro, não se aproveita nem o couro de quem andá dentro...
O maquinista, que vinha apreciando o diálogo, quis espantá-los e puxou a corda do apito. Com o susto, os vaqueiros pularam espavoridos, um de barbicacho enfiado e o outro empurrando o chapéu-de-couro, como arma de defesa. E um dêles falou:
_ Cumpade Reimundo, vambora que o bicho ‘tá nos estranhando...!


- Transcrito do livro Cantadores, de Leonardo Mota. Editado pela primeira vez em 1921, prefaciado na sua terceira edição (Imprensa Universitária do Ceará/1960) pelo igualmente genial Luís da Câmara Cascudo.
Foi mantida a grafia original.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Livre pensar, é só pensar. Mas na cabeça de nada lhe serve. Exprima-o!