sábado, 31 de julho de 2010

Lei sem admoestação!


Até que ponto pode o estado influir no comportamento cultural dos seus integrantes?
Se aceita uma determinação administrativa modificar um procedimento milenar, tão inerente à condição humana, para não dizer instintivo?
Tramita, nas esferas governamentais, uma nova lei sobre a proibição de castigos corporais em menores de idade.
Educadores, psicopedagogos, sociólogos, orientadores e, principalmente, os pais, todos dentro das novas inclinações modernistas, irão se manifestar, fazendo a balança tender, assim me parece, para a intermitência do que a convivência doméstica deveria ter de mais comum: o relacionamento entre genitores e suas crias.
Na Roma antiga, apenas duas categorias podiam envergar togas: os pretores e as crianças, o que nos leva a pensar sobre a importância dada à infância, a despeito de que o chefe de família romano detivesse o pátrio poder. Podia um pai matar o próprio filho, sem que a ele fosse imputado crime algum.
Nos dias atuais, na nossa complexa sociedade contemporânea, parece tudo ser permitido aos rebentos. A palavra limite, quando se fala em educação infantil, aparentemente, foi sumaria e inapelavelmente removida dos nossos vocabulários.
Não quero aqui interceder pelos que praticam covardias contra indefesos. Mesmo porque há os que imaginam que, se pancada não resolveu, é porque foi pouco. Isso sem contar nas discrepâncias de comportamento que certas almas desvirtuadas infligem aos seus dependentes. Existe uma questão educacional profundamente arraigada na sociedade, ao menos na que pertenço: quem come do meu pirão, apanha do meu cinturão!
Não concordo, acho que não há necessidade do uso da força física e que o exemplo sempre fala mais alto.
Tenho duas filhas, de 27 e 19 anos, que respeitam as orientações de seus pais e jamais necessitei tocar em um só fio de cabelo delas; muito menos chegar a submetê-las a situações vexatórias, pois existem castigos bem piores do que algumas palmadas na bunda, podem acreditar.
Educar é uma responsabilidade que demanda muito tempo e trabalho. Se você tem disponibilidade para antever as necessidades do seu filho, certamente não vai ter problemas muito sérios com ele. É bem verdade que existem exceções: tive amigos na minha juventude que eram complicados para os seus pais, mas tornaram-se assim, acredito, por falta de investimento pessoal.
Existe, como em tudo mais na vida, um tempo certo para a atitude. Uma ação branda no instante adequado evita muitos dissabores futuros. A velha máxima de que pisada de galinha não mata pinto, parece se adequar aos demais espécimes animais.
Defendo o direito de se criar nossos filhos sem a intervenção unilateral de um aparelho que não possui meios, nem competência de fazer cumprir um preceito extravagante. Se agressão sempre foi crime, o que pretende a nova resolução? Que crianças escapem ilesas às suas imaginações fantasiosas ou a comportamentos pouco responsáveis? Tudo, como estamos cansados de saber, não pode chegar a extremos.
Se o governo não consegue orientar, acolher, prover ou educar as milhares de crianças que erram pelas ruas das cidades, abandonadas, sem perspectiva de nada ou futuro algum, vai querer interceder junto à família, a única instituição que parece funcionar nesta joça de país?
Há muito a se fazer pelos pequeninos que representam o futuro dessa nação.
Se intrometer com prescrições inócuas em áreas de difícil controle, não me parece muito inteligente.
Focos mais razoáveis, por favor, senhores legisladores!

terça-feira, 20 de julho de 2010

And now?


Por que mostrar-se estupefato, se és indigno deste sentimento?
Deixastes o tempo corroer as dobradiças e, agora,
portas postas ao solo, te assombras com a devassidão dos teus domínios?
Agistes tal sentinela atenta, enquanto solapavam as tuas muralhas.
E então te vês assim, destituído da proteção que imaginavas...
É tarde, já invadiram os teus espaços. Bem sabes que
os teus caminhos já não são mais teus, e o que é pior,
o futuro com que sonhastes, já não te pertence.

Tolice pensar na eternidade do que é tão transitório!

sábado, 17 de julho de 2010

Bendita C.N.H.

O envelope foi colocado, em algum momento, sorrateiramente sob a porta e ali ficou, destacando sua alvura contra o piso tabuado e escuro da sala.
Naturalmente que não por muito tempo: minha loura andarilha apartamentiana fatalmente o encontraria, como realmente acabou acontecendo e, contendo o grito, apressou-se em mostrar-me, embora preocupada com um pequeno rasgão na etiqueta de entrega, o que comprometeria a inviolabilidade da correspondência expressa.
Estava tudo normal com a encomenda e antevendo o conteúdo, seus olhos arregalados brilharam e dedos apressados confirmaram o ansiosamente aguardado documento..
Ali, em suas mãos, naquele diminuto pedacinho de papel, com timbres de verde esperança e as marcas da República, estava a sua carta de alforria, sua permissão para decolagem, seu estampido na linha de largada.
Lina está, finalmente, habilitada.
Não que ela seja uma apaixonada por carros e dirigir não me parece que possa ser um dos seus maiores prazeres.
É que, apesar de todas as vantagens de se morar na Praia do Futuro, como viver pertinho do mar, gozar de um relativo silêncio e ouvir a passarada o dia inteiro trocando lero-lero em trinados intermináveis, além de poder se deleitar com a visão das dunas e seus pés de muricí, a questão transporte acaba se tornando um fator por demais complicado para quem habita aqui.
O mundo jovem civilizado de Fortaleza, com seus shoppings, malls, facus, bares e baladas, fica além das elevações areníticas que delimitam o litoral leste e transpô-las, acelerando com vontade própria e poder lá de cima vislumbrar todas as possibilidades que a cidade oferece, é uma maravilha que, somente nós, os moradores cotidianamente apressados e costumeiramente indiferentes, não percebemos.
Para uma garota de dezenove anos e todos os seus sonhos e vontades é uma perspectiva bastante diferenciada. Algo como poder voar, sem depender das asas dos outros.
O direito de ir e vir é uma prerrogativa expressa na constituição. A caçula agora vai poder exercê-la com mais conforto e comodidade.
Bem-vinda ao mundo solo, meu coração!

sexta-feira, 16 de julho de 2010

Os barcos de São Francisco de Canindé.

Dos brados precursores da liberdade, aos entoados aboios da vaqueirama,
Dos berros dos vendedores ambulantes, aos clamores apaixonados dos trovadores, tudo no Ceará se ganha é no grito, é na garganta.
Daí termos tão bons cantadores e contadores; entre os maiores, senão o maior, dentre os que conheço, o autor do texto que se segue.

Contava-me na infância um veterano da guerra do Paraguai, ferido no ombro de Itororó, que, no hospital de sangue, identificava a origem dos seus companheiros de dor pelos santos que invocavam, gemendo. Quando ouvia dizer: - Ai, minha Nossa Senhora de Nazaré! Sabia tratar-se dum paraense. Se escutava: - Ai, meu Senhor do Bonfim! Era um baiano. Se outro bradava:- Salve-me a Senhora da Aparecida! Seria paulista ou mineiro do sul. E todos os cearenses, sem exceção, clamavam: - Valha-me, São Francisco das Chagas de Canindé!
Essa devoção nasceu no sertão do Ceará com a grande seca de 1792. Trouxera-a para Canindé um português vindo do Recife, o capitão Francisco Xavier de Medeiros. Favoreceu-a a pregação feita naqueles rincões pelos missionários franciscanos frei Manuel de Santa Maria e São Paulo, frei Bartolomeu e frei José de Santa Clara Monte Falco, que, de 1759 a 1800, andaram em desobriga pela então freguesia de S. José de Ribamar, que se estendia do litoral até o alto sertão, compreendendo em seus limites tanto Fortaleza como o povoado de Canindé, onde outrora se aldearam os índios desse nome. Quando acabou a Seca Grande, como foi chamada, o povo dessa localidade e suas redondezas decidiu levantar ali uma Igreja ao santo, que os consolara e salvara nas dramáticas aperturas da crise. Foi benfeitor principal das obras da construção o capitão Francisco Xavier de Medeiros.
Conta-se que o terreno escolhido para a ereção do templo se incluía na gleba da fazenda Renguengues, pertencente a três donos residentes em Pernambuco, os quais formalmente se negaram a cedê-lo por doação e mesmo por venda. Logo depois dessa negativa, adoeceu um deles, em breve falecendo. O mesmo aconteceu ao segundo daí a pouco tempo. E o terceiro, mal sentiu que também ia cair doente, prometeu ao santo, se escapasse, dar o terreno pedido. A edificação começou e prosseguiu com esmolas que vinham de toda a parte. Já estavam as torres bastante altas, quando dum dos andaimes escorregou e despencou-se um pedreiro. Ao cair, gritou por S. Francisco e logo se viu suspenso no espaço pela fralda da camisa a uma ponta de viga, o que deu tempo a ser socorrido, e toda gente do lugar presenciou.

No correr do tempo, os milagres e a fama de S. Francisco foram se espalhando pelos sertões do Ceará e de todo o Nordeste, as romarias aumentando ano a ano, o povoado tornando-se vila e cidade, as promessas multiplicando-se em proporções geométricas, os donativos crescendo, de modo que a primitiva Igreja se transformou em imponente basílica moderna e, com os óbolos dos fiéis, os frades franciscanos que regem aquele patrimônio sustentam admiráveis instituições de caridade, instrução e educação profissional da juventude sertaneja.
O cearense emigrado, aonde quer que vá, leva no coração a fé na proteção de seu grande santo, como aqueles humildes soldados feridos em defesa da honra do Império nos campos inóspitos do Paraguai. Nas selvas amazônicas, nas minas do Amapá, nos seringais do Acre, nos confins de Mato Grosso, nos cafezais do Paraná ou no asfalto da Babilônia paulista, ao sofrer qualquer golpe do destino, moral ou físico, volta-se para o miraculoso padroeiro da pequena cidade do sertão: - Valha-me S. Francisco das Chagas de Canindé. Faz-lhe a sua promessa e religiosamente a paga, seja como for. Poderá faltar a tudo, menos ao seu querido protetor celeste. Em todas as angústias e aflições, dirige-se seu pensamento para o santuário da sua terra natal: a Basílica do Pobrezinho de Assis.
Por isso, os ex-votos ricos e pobres, pintados ou esculpidos, de pau ou de pedra, de metal ou de cera, atopem os armazéns a eles destinados, anexos à Igreja. São em tamanha quantidade que seria impossível guardá-los para sempre. Por isso, todos os anos se escolhem os mais interessantes e significativos, derretendo-se os de cera para fazer velas e queimando-se os demais. Senão, no fim de dez anos, não haveria mais lugar nos depósitos por maiores que fossem.
Dentre esses ex-votos, os mais assombrosos, e esta palavra é mais do que apropriada, são uns barquinhos de 50 a 80 centímetros de comprimento, que vêm dos mais distantes igarapés da Amazônia, pelos afluentes do Rio-Mar, onde eles despejam suas águas, por ele abaixo e pelo oceano afora até as praias nordestinas, trazendo velas para serem acesas no altar do Santo ou dinheiro para missas e para suas obras de benemerência, silenciosos e fiéis mensageiros dos humildes cearenses perdidos na batalha da borracha, dentro das brenhas do Inferno Verde.
Nas suas horas de necessidade e de dor, esses cearenses fazem suas promessas a São Francisco das Chagas de Canindé e, como não dispõem de outro meio de comunicação com sua terra natal, sabendo que os ribeiros correm para os rios e os rios correm para o mar, como diz a velha canção portuguesa, constroem esses barcos, alguns até com certo gosto artístico, ornamentando-os com carinho, colocam neles ex-votos ou dinheiro, às vezes até 2 ou 3 mil cruzeiros, calafetam-nos completamente e os lançam às águas do igarapé ou do rio amazonense onde estão vivendo. Além do endereço: Para S. Francisco de Canindé, pintam em lugar visível outros letreiros neste estilo, por exemplo: Pede-se à pessoa que encontrar este barco na beira fazer o favor de pôr para o meio. Graças alcançadas deste Grande Santo, ou: Quem me encontrar parado me empurre para o meio.

Canoeiros ou pescadores que acham um desses pequenos barcos encalhado numa curva do rio ou numa coroa de areia, preso nas vegetações marginais ou enredado nos camalotes e balseiros, liberta-o e tange-o correnteza abaixo. Assim, eles navegam pelo igarapé, passam ao afluente, seguem pelo Amazonas, são lançados ao mar e as correntes oceânicas se encarregam de leva-los às praias de Tutóia, ou Amarração, do Camocim ou do Acaraú. Jangadeiros e caboclos que ali os encontram os entregam ao primeiro viandante que siga para o interior e, de mão em mão, levados por um comboieiro ou por um chofer de caminhão de boa vontade, os barcos vão ter às mãos dos frades de Canindé com sua carga intacta. A honestidade daquela pobre gente não lhe permite tocar no dinheiro do santo. E, se tocasse, decerto lhe aconteceria grande desgraça. São às dezenas os barcos dessa espécie que chegam anualmente a Canindé.
Desde longa data costumam as populações ribeirinhas do S. Francisco enviar pelas águas do rio à Lapa do S. Bom Jesus, como dizem, ao Santuário do Bom Jesus da Lapa, na Bahia, suas oferendas em dinheiro dentro de cabaças hermeticamente fechadas, com uma vela acesa em cima, que navegam de bubuia, correnteza abaixo, respeitadas por todos os pescadores e barqueiros. Mas somente praticam isso os crentes que habitam a montante da Lapa, baianos e mineiros, a viagem dessas cabaças é relativamente curta e somente fluvial, enquanto os barcos de S. Francisco das Chagas de Canindé perfazem distâncias enormes através de alguns dos maiores rios do continente, e do oceano, sendo depois conduzidos por terra a dezenas de léguas do litoral.
O fato do envio desses barcos desde os recessos da Amazônia até o sertão cearense, através de inúmeros percalços, é verdadeiramente assombroso, implica um ato extraordinário de fé primitiva, espontânea e ingênua, testemunha a existência , insuspeitada pela gente sofisticada das grandes capitais, dum outro Brasil, dum Brasil que não conhecemos, que está mesmo fora das apressadas e interesseiras cogitações dos que vivem para o futebol, o café society ou a politicagem, Brasil inteiramente à margem deste Brasil desvirtuado, cosmopolita, sem peculiaridade e sem tradição, que se tem formado no litoral e no qual vivemos. É finalmente um dos atos mais extraordinários da crença do povo nordestino nos seus santos. Acresce que os seringueiros, que não podem ou não sabem construir um desses pequenos barcos, enviam suas dádivas ao Padroeiro do Canindé sob a forma de bolas de borracha defumada, soltas também nas águas correntes, que o Amazonas despeja no Atlântico e este atira às praias, onde as pessoas do povo as apanham e mandam pelos mensageiros que encontram ao santuário sertanejo. Todos os anos os frades de Canindé, apuram algum dinheiro com a venda dessa borracha, trazida, como diria o clássico, sob los rios que vão.
Isto que aqui se narra é tão impressionante que até parece episódio da história de outras eras, dum Brasil, que não é mais deste tempo utilitário, que talvez já se esteja, por nosso mal, acabando, mas que é belo, por demais belo, assim cheio da inocente, da puríssima fé em Nosso Senhor Jesus Cristo e nos milagrosos santos da Sua Madre Igreja, sobretudo, naquele Poverello, tão suave e tão pobre, que sabia falar às aves e aos peixes, e recebia nas mãos e nos pés os mesmos estigmas rubros do seu Deus imolado pelos homens, como ele lanceado no flanco e coroado em sangue pela mesma coroa de Glória e de Martírio.


- Gustavo Barroso em À MARGEM DA HISTÓRIA DO CEARÁ, editado em 1962 pela UFC, tendo sua segunda edição, de onde foi copiado este capítulo, em 2004, sob os auspícios da FUNCET-PMF.

Gustavo Dodt Barroso, que nasceu em Fortaleza em 1888, foi advogado, político, contista, museólogo, folclorista, ensaísta, cronista, arqueólogo, memorialista e romancista. Membro da Academia Brasileira de Letras, foi o criador do Museu Histórico Nacional, em 1922, por ocasião das comemorações do Centenário da Independência, iniciativa do então presidente Epitácio Pessoa, tendo dirigido a instituição desde a fundação até a sua morte, em 1959.

quarta-feira, 14 de julho de 2010

Dois matutos e o trem.

Adoro esses "causos" populares e tenho uma afinidade cotidiana com a extinta Estrada de Ferro de Sobral: meu avô paterno foi lanterneiro da Rede Ferroviária Cearense até morrer. A estação da foto abaixo, ponto final da ferrovia rumo ao porto de Camocim, fica ao lado das docas e, do outro lado da praça, naquela casinha branca e vermelha, é onde resido, lá na terra da beleza sem fim.

Logo que a Estrada de Ferro de Sobral chegou ao Ipu, levada pelo engenheiro João Tomé de Sabóia e Silva, as ladeiras da “Mina”, que dão acesso à Ibiapaba, formigavam de serranos curiosos de ver o trem. Também do sertão de “Jaçanã” acorria gente tocada daquela curiosidade.
Dois agregados do Major José Liberato deixaram a fazenda “Bom Jesus” e foram espiá o bruto. Hora e meia antes da chegada do horário, já êles estavam na Estação, numa espera impaciente.
Quando o trem se avizinhava do “Cajueiro”, a locomotiva apitou, anunciando a aproximação.
_ Ah, bicho de berro bom! Disse um dêles. Isso sim! Isso é que eu chamo tê sustança.
Após a chegada, enquanto os passageiros desembarcavam e havia a manobra habitual, os dois vaqueiros deram largas à sua curiosidade, analisando toda aquela introsa e fazendo os mais picarescos comentários:
_ Home, mas me diga uma coisa: que idade terá esse animal?
_ Home, mas êle é mêrmo um sendero de força! Cumo é que êsse dimunho pode com tanto carro na carrêra?
_ ‘Tão dizendo que êle saiu hoje do Camocim e já fêz trinta e seis légua. Vá ter fôrgo assim no inferno!
_ Mas, cumpade, êle já ‘tá suado. Espie: ‘tá pingando suó daquele cano. Ele ‘tá mas é afrontado...
_ Lá o quê! O bicho já veve seleiro. Isso já ‘tá aquilotado. Se êle agora estralasse nas junta, ia batê de novo no Camocim.
_ Home, isso é que é: não tem de botá cangaia, não tem que dá iágua, não tem de deixá no piadô... Tem uma coisa: se êsse dimunho enfiá o dedo no cadaço da celouro, não se aproveita nem o couro de quem andá dentro...
O maquinista, que vinha apreciando o diálogo, quis espantá-los e puxou a corda do apito. Com o susto, os vaqueiros pularam espavoridos, um de barbicacho enfiado e o outro empurrando o chapéu-de-couro, como arma de defesa. E um dêles falou:
_ Cumpade Reimundo, vambora que o bicho ‘tá nos estranhando...!


- Transcrito do livro Cantadores, de Leonardo Mota. Editado pela primeira vez em 1921, prefaciado na sua terceira edição (Imprensa Universitária do Ceará/1960) pelo igualmente genial Luís da Câmara Cascudo.
Foi mantida a grafia original.

quarta-feira, 7 de julho de 2010

Pro dia nascer feliz...

"O tempo não para", entoam pessoas a bela canção do grande poeta.
Mas, no dito popular, o tempo não corre, voa.
A verdade, pasmem, é que hoje faz vinte anos que Cazuza se foi.
E pra homenageá-lo, resolví postar um texto escrito há tempos atrás.
Meu co-cunhado recebeu, via net, o texto de uma psicóloga, que transcrevo logo abaixo. Como fã incondicional de Cazuza, meu pediu para escrever uma resposta, mostrando que uma coisa é uma coisa e outra...
Foi o que fiz (ou pelo menos tentei).

Uma psicóloga que assistiu o filme Cazuza escreveu o seguinte
texto:
A VERDADE SOBRE CAZUZA.
"Fui ver o filme Cazuza há alguns dias e me deparei com uma
coisa estarrecedora: as pessoas estão cultivando ídolos errados.
Como podemos cultivar um ídolo como Cazuza? Concordo que suas
letras são muito tocantes, mas reverenciar um marginal como ele, é,
no mínimo, inadmissível.
Marginal, sim, pois Cazuza foi uma pessoa que viveu à margem
da sociedade, pelo menos uma sociedade que tentamos construir (ao
menos eu) com conceitos de certo e errado. No filme, vi um rapaz
mimado, filhinho de Papai que nunca precisou trabalhar para
conseguir nada, já tinha tudo nas mãos. A mãe vivia para satisfazer
as suas vontades e loucuras. O pai preferiu se afastar das suas
responsabilidades e deixou a vida correr solta. São esses pais que
devemos ter como exemplo?
Cazuza só começou a gravar porque o pai era diretor de uma
grande gravadora. Existem vários talentos que não são revelados por
falta de oportunidade ou por não terem algum conhecido importante.
Cazuza era um traficante, como sua mãe revela no livro,
admitiu que ele trouxe drogas da Inglaterra, um verdadeiro
criminoso. Concordo com o juiz Siro Darlan quando ele diz que a
única diferença entre Cazuza e Fernandinho Beira-Mar é que um
nasceu na zona sul e outro não.
Fiquei horrorizada com o culto que fizeram a esse rapaz,
principalmente por minha filha adolescente ter visto o filme.
Precisei conversar muito para que ela não começasse a pensar que
usar drogas, participar de bacanais, beber até cair e outras coisas
fossem certas, já que foi isso que o filme mostrou.
Por que não são feitos filmes de pessoas realmente
importantes que tenham algo de bom para essa juventude já tão
transviada? Será que ser correto não dá Ibope, não rende
bilheteria? Como ensina o comercial da Fiat, precisamos rever
nossos conceitos, só assim teremos um mundo melhor.
Devo lembrar aos pais que a morte de Cazuza foi conseqüência
da educação errônea a que foi submetido. Será que Cazuza teria
morrido do mesmo jeito se tivesse tido pais que dissessem NÃO
quando necessário?
LEMBREM-SE: DIZER "NÃO" É A PROVA MAIS DIFÍCIL DE AMOR.
Não deixem seus filhos à revelia para que não precisem se
arrepender mais tarde. A principal função dos pais é educar. Não se
preocupem em ser amigo de seus filhos. Eduque-os e mais tarde eles
verão que você foi a pessoa que mais os amou e foi, é, e sempre
será, o seu melhor amigo, pois amigo não diz SIM sempre."

Karla Christine - Psicóloga Clínica




¨O olho é apenas um vértice de angulo onde convergem as multidões sensoriais da estética.
Por si só o olho vê o que existe na dimensionalidade relativa ao observador.
As dimensões variam e se ampliam com a sensibilidade de quem olha¨.
(Câmara Cascudo)


Não gostaria de incorrer no mesmo desastroso erro de interpretação ao qual a psicóloga clínica Karla Christine se submeteu ao analisar, de forma resumidíssima e com uma parcialidade assustadora, vida e obra do grande poeta, cantor e compositor carioca Agenor Miranda de Araújo Netto, no seu malfadado texto ¨A verdade sobre Cazuza¨.

A espécie humana coexiste em universos cujas dimensões somente conseguem ser quantificadas através da tradução dos seus próprios sentidos. Por isso as escalas que determinam as diferenças nas nossas diversas realidades, se fazem através das comparações de valores absolutos e antagônicos, da enunciação dos contrastes. É assim entre o claro e o escuro; ou com o grande e o pequeno; longe ou perto; certo ou errado; verdade ou mentira. Tudo é tão relativo! Com minha estatura mediana, poderia, entre pigmeus, ser chamado de gigante; já em uma equipe de basquete da NBA, por exemplo, não passo de um nanico.

A fábula do cego de nascença que, curioso em conhecer a forma de um elefante e colocado ao lado do animal, se abraçou a uma de suas pernas, exclamando com credulidade - ¨o elefante se parece com um coqueiro!¨, exemplifica como uma visão limitada da realidade pode induzir uma pessoa, ainda que bem intencionada, ao erro.

Mister se faz investigar a situação a ser julgada, com sobriedade, sem o ranço cultural que cada um de nós possui individualmente, para somente então emitirmos nossa opinião, na medida do possível, desprovida de tendenciamentos de qualquer espécie: políticos, religiosos, antropológicos, sociológicos... Sem sectarismos e/ou preconceitos.

Ao contrário da psicóloga, não assisti ao filme O Tempo Não Pára (dirigido por Sandra Werneck e Walter Carvalho), elogiado pela forma como conseguiu retratar com fidelidade a realidade do artista. Sequer li o livro escrito por sua mãe, coisa que a cronista afirma ter feito. Não fosse a minha estupenda admiração pelo trabalho maravilhoso de Cazuza, desconfiaria que a psicóloga pudesse ser mais fã dele do que eu.

Na minha casa – e na de milhões de brasileiros – existem algumas gravações dele. A mim não interessa que ele tivesse sido chamado de ladrão, de bicha ou maconheiro. Mais que o nome do santo, o que me importa é o milagre! Suas músicas e seus poemas falam por si só. Cazuza é o Noel dos anos 80 e como ele, se tornou vítima da própria genialidade e suas conseqüências nefastas; modificaram-se, como o tempo requer, apenas os agentes: ao invés do álcool e tuberculose, que mataram o poeta da Vila, Cazuza sucumbiu às drogas e à aids.

Entretanto, transgredir contra o establishment não foi privilégio do Cazuza. Os gênios, com o dom que a natureza os dotou, diferem da imensa maioria dos mortais. Se foram favorecidos pela capacidade natural de criar coisas diferentes, por que deveriam agir com a normalidade do povo que ¨tenta construir uma sociedade com conceitos de certo e errado¨?

Certo, D. Karla (na minha opinião, posso estar errado!), seria a sra. se inteirar sobre a veracidade dos acontecimentos.

Cazuza foi, indubitavelmente, um dos maiores poetas musicistas que estas plagas já produziram. Apesar de já versificar desde os dezessete anos, somente começou a gravar um ano após se juntar ao Barão Vermelho – o primeiro disco saiu em 1982. Ezequiel Neves, produtor da Som Livre, a gravadora onde o seu genitor era o presidente, foi quem primeiro conheceu o trabalho do grupo e o apresentou ao Guto Graça Mello, diretor artístico da empresa, que, obviamente, ficou impressionado com a música deles. Seu pai, a princípio, não concordou com a idéia: tinha receio dos comentários por o cantor/compositor da banda ser seu filho (a menção da psicóloga, inclusive, mostra que em parte ele tinha razão); mas acabou cedendo ao bom senso. Mesmo porque o Barão Vermelho já tinha propostas de outras gravadoras. A Som Livre faturou muito com a decisão acertada do Sr. João Araújo.

Acredito que o raro talento de Cazuza forçosamente o impeliria ao estrelato. O fato de sua mãe ser cantora, com a família convivendo em um ambiente musical e seu pai ser presidente da maior gravadora do país, na época, aliado a realidade de sua vida cotidiana, convivendo, dentro da sua própria residência, inclusive, com a nata da produção musical da nação e seus artistas, apenas facilitou o inevitável. Contra o enfatismo da psicóloga, pode-se observar que existem diversos presidentes de gravadoras cujos filhos não sabem poetar, sequer solfejar do-re-mi-fá. O sucesso, como é sabido, vem do talento e através do povo e nunca é produto de indicações ou nepotismo. Elementar, minha cara Karla!

Quanto ao seu desempenho profissional, Cazuza, em nove anos de trabalho, gravou ao todo onze discos, sendo que, na sua carreira solo foram cinco selos durante quatro anos. Media superior à de artistas tarimbados, que conseguem fazer um lançamento anual, quando tanto. É autor de mais de duzentas composições – algumas inesquecíveis. Apresentou-se durante anos em milhares de shows, no Brasil e no exterior. Esse é o perfil de uma pessoa que ¨nunca precisou trabalhar para conseguir nada, que tinha tudo nas mãos¨?

A despeito de, na sua desregrada vida, Cazuza ter se envolvido em algumas ocorrências policiais por porte ilegal de droga - para uso pessoal, o que hoje já não é crime - não me consta que ele fosse um criminoso ou marginal, como adjetivado sem parcimônia pela escritora do texto, dilatando propositalmente o sentido das palavras para adaptá-las a seu objetivo. Seria criminosa uma criatura que não matou, não roubou, não se utilizou de atos ilícitos ou não causou prejuízos a outrem? E marginal (à margem, como ela mesma tenta explicar) uma figura que se inseriu na historia para não mais dela sair, que representou uma geração inteira, que é lembrado em sons, lirismos, filmes, livros e até em textos de certas pessoas com falsos moralismos e sem discernimento?

Quanto ao infeliz comentário do juiz Siro Darlan, é preciso que se diga: gato que nasce dentro do forno, não é pão: é gato! Cazuza nasceu em meio à gente de caráter, mas sua genialidade não se deve a este simples detalhe. Além do que, existe uma diferença abissal entre Cazuza e o famigerado bandido Fernandinho Beira-Mar, este sim, um CRIMINOSO com todas as letras maiúsculas, capaz de matar um semelhante, com requintes de perversidade até, só para, como se diz popularmente, ver a queda. Fernandinho poderia reencarnar, se isso fosse possível, inúmeras vezes e jamais conseguiria, com o seu espírito desvirtuado, ter uma fração, mínima que fosse, da sensibilidade e do talento de Cazuza, o poeta do seu tempo.

Tomara que jamais necessite eu ser julgado por um magistrado ¨tão criterioso e de opinião tão abalizada¨ quanto o meritíssimo juiz acima citado.

Cazuza foi, importante se faz lembrar aos mais esquecidos, a primeira figura publica do país a admitir que era soropositivo, um tremendo tabú para a época, tirando do ostracismo um enorme grupo de doentes que se enfurnavam em suas tocas com medo de mostrar a cara. E acelerando, com sua ousadia, o enfoque sobre o terrível problema social que a aids acabaria se tornando. Que imensa coragem se mostrar inteiro e depauperado à sanha dos reacionários, naquela famosa capa de Veja!

Faltou criteriologia à autora para analisar a película ¨assustadora¨ como se deveria: o exemplo que Cazuza nos deixou, principalmente, é sua excepcional e monumental criação. Seus erros e devaneios, entretanto, também nos servem de modelo, no sentido que podemos conhecer o outro lado e realizar nossas comparações. Há de se levar em consideração a localização espacial dos eventos: o comportamento rebelde de se usar drogas e cometer pequenos delitos, que naquela década causavam espanto ao tradicionalistas, hoje é pratica corriqueira entre crianças de dez ou doze anos. Mudaram os tempos; somente a psicóloga, que continua usando termos como ¨essa juventude tão transviada¨, não notou.

Não consegui definir ao certo o que levou D. Karla Christine a pronunciamento tão radical, não condizente à analítica isenta que sua profissão exige. O texto é carregado de estarrecimentos, inadmissibilidades, conceitos, verdades, afirmações, horrorizamentos, receios, conseqüências. Sua linguagem redundante me faz desconfiar de um sentimento oculto, que HG Wells expõe muito bem, na sua famosa citação: ¨A indignação diante do pecado alheio não passa de inveja com cara de beatitude¨.

Decerto, mais do que qualquer outro motivo, a celeuma causada pela psicóloga se deve, ao meu ver, mais ao protecionismo exagerado dedicado à sua influenciável cria que, incapaz de diferenciar fantasia da realidade, não pode, sob nenhuma hipótese, assistir a um filme do Drácula, sob o risco de virar vampira. Ou ver um desenho do Srek sem sentir o impulso incontrolável de se tornar Fiona. Vai ser preciso muita conversa da psicóloga para mostrar à sua filha adolescente que uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa... como diria um queridíssimo conhecido meu.

terça-feira, 6 de julho de 2010

FLYING DUTCHMAN ESTONTEANTE


A coisa terminou um tanto complicada para mim e para a seleção brasileira, no final da manhã, início de tarde, daquela sexta-feira fatídica.
E não era pra menos. Você se ver obrigado a entrar em campo, com uma responsabilidade daquela, logo após acordar, até mesmo um tanto bocejante... E, ainda mais de ressaca: quinta à noite sempre tem caranguejo na minha cidade e o delicioso crustáceo decápode braquiúro combina com cerveja, muita cerveja.
Deveria haver uma lei universal que instituísse a prática futebolística, assim, algo em torno do crepúsculo vespertino, quando ainda há luz suficiente para um bom jogo e o poder do Sol vai se esvaecendo, tornando possível o contato entre um atleta mal preparado e sua cabeça inchada, com o astro principal do nosso sistema planetário e sua capacidade de provocar enxaquecas.
Às onze horas ao raiar do dia, francamente, não há a menor condição!
Talvez isso explique, em parte, a minha ineficiência para a peleja e a inépcia das estrelas do escrete canarinho, que acabaram provocando a nossa eliminação nestas quartas-de-final da Copa da África do Sul.
Mas não foi por falta de aplicação, garanto.
O fato de ser mais um técnico, assim como todos os demais brasileiros, não me impossibilita de forma alguma, através da minha versatilidade como jogador, de atuar na cancha de qualquer praça esportiva. Posso me transformar em um coringa para os momentos mais tensos e é por isso que pulo para cabecear um cruzamento nas cidadelas adversárias, projetando ao máximo o pescoço e tenho que em seguida voltar feito um louco para ajudar na marcação; roubo bolas e as distribuo, ao mesmo tempo em que, sob a minha meta, me estico em defesas mirabolantes; bato escanteios e corro para receber a pelota e grito com os meus companheiros, exigindo a mesma garra e ainda determino, com meus fenomenais lançamentos, o melhor lado do campo para o ataque.
E vocês vão ter de convir comigo que, fazer tudo isso sentado em uma mesa de bar, é tarefa para poucos.
Ao término da contenda estou exaurido e pior, não conto, ao contrário dos profissionais muitíssimo bem remunerados do meu time, com vestiários adequados, cremes e terapêuticos específicos ou médicos e massagistas especializados. E nem tenho a capacidade de professar as desculpas amarelas que eles possuem, tentando explicar o inexplicável.
Não fosse a hidratação constante, gelada, estupidamente gelada, a que me submeto durante as partidas, poderia muito bem sair da Cabana da Negona, palco das minhas alegrias neste campeonato e desta tristeza final de eliminado, numa ambulância.
Não é à toa que, por precaução, meu carro é branco.
O que não impediu, entretanto, devida à velocidade excessivamente impressa pelo carrossel holandês, que eu saísse de lá, completamente zonzo.
É, esse negócio de laranja mecânica em quantidade exagerada, nunca fez muito bem ao meu sistema gastrointestinal.

O tempo e o filósofo!

Digno de reflexão, o texto abaixo transcrito, terceiro capítulo de "Sobre a brevidade da vida", é de autoria de Sêneca e foi criado provavelmente no ano 56 da nossa era. Dirigia-se ao seu sôgro, Pompeius Paulinus, com o intuito de fazê-lo desistir de assumir a praefectura annonae romana e se dedicar à filosofia. Delicie-se.



Rubens - Museo del Prado - Morte de Seneca - 1615


Todos os espíritos que alguma vez brilharam consentirão neste único ponto: jamais se cansarão de se espantar com a cegueira das mentes humanas. Não se suporta que as propriedades sejam invadidas por ninguém, e, se houver uma pequena discórdia quanto à medida de seus limites, os homens recorrem a pedras e armas; no entanto, permitem que outros se intrometam em suas vidas, a ponto de eles próprios induzirem seus futuros possessores; não se encontra ninguém que queira dividir seu dinheiro, mas a vida, entre quantos cada um a distribui! São avaros em preservar seu patrimônio, enquanto, quando se trata de desperdiçar o tempo, são muito pródigos com relação à única coisa em que a avareza é justificada. Por isso, agrada-me interrogar um qualquer, dentre a multidão dos mais velhos: “Vemos que chegaste ao fim da vida, contas já cem ou mais anos. Vamos! Faz o cômputo de tua existência. Calcula quanto deste tempo credor, amante, superior ou cliente, te subtraiu e quanto ainda as querelas conjugais, as reprimendas aos escravos, as atarefadas perambulações pela cidade; acrescenta as doenças que nós próprios nos causamos e também todo o tempo perdido: verás que tens menos anos de vida do que contas. Faz um esforço de memória: quando tiveste uma resolução seguida? Quão poucas vezes um dia qualquer decorreu como planejaras!? Quando empregaste teu tempo contigo mesmo? Quando mantiveste a aparência imperturbável, o ânimo intrépido? Quantas obras fizeste para ti próprio? Quantos não terão esbanjado tua vida, sem que percebesses o que estava perdendo; o quanto de tua vida não subtraíram sofrimentos desnecessários, tolos contentamentos, ávidas paixões, inúteis conversações, e quão pouco não te restou do que era teu! Compreendes que morres prematuramente”. Qual é pois o motivo? Vivestes como se fôsseis viver para sempre, nunca vos ocorreu que sois frágeis, não notais quanto tempo já passou; vós o perdeis, como se ele fosse farto e abundante, ao passo que aquele dia que é dado ao serviço de outro homem ou outra coisa seja o último. Como mortais, vos aterrorizais de tudo, mas desejas tudo como se fôsseis imortais. Ouvirás muitos dizerem: “Aos cinqüenta anos me refugiarei no ócio, aos sessenta estarei livre dos meus encargos”. E que fiador tens de uma vida tão longa? E quem garantirá que tudo irá conforme planejas? Não te envergonhas de reservar para ti apenas as sobras da vida e destinar à meditação somente à idade que já não serve para mais nada? Quão tarde começas a viver, quando já é hora de deixar de fazê-lo. Que negligência tão louca a dos mortais, de adiar para o qüinquagésimo ou sexagésimo ano os prudentes juízos, e a partir deste ponto, ao qual poucos chegaram, querer começar a viver!