segunda-feira, 28 de junho de 2010

Maciço, amor antigo!


Era sempre muito cedo, escuro ainda, quando vinham balançar minha pequena carcaça, avisando que era chegada a hora.
Preguiçosamente levantava-me e no imenso corredor do casarão já sentia o inconfundível aroma de café quente, que minha adorável avó Laís laboriosamente preparava todos os dias.
Da garagem, “esquentando o motor”, Ricardo, nosso rotineiro chauffeur, bradava que estava tudo pronto.
E lá íamos nós.
Não me recordo exatamente porque, sequer consigo explicar como, entre tantos netos, normalmente eu era o chamado. Contudo, mais do que parecer um feito casual do destino, essa singularidade marcou indelevelmente a minha existência.. E criou uma fonte de doces recordações, que quando em vez assoma meu espírito e de onde posso sorver parte da minha infância feliz.
Zé Mendonça, meu avô querido, possuía, no topo da serra, em Pernambuquinho - antigo Rio das Cobras - um pequeno sítio de 3 hectares, o Nó Seco. Ocasionalmente, sob o pretexto de buscar algumas frutas, pegava sua reluzente Rural Willys, pneus cidade-campo com faixas brancas, seu filho mais novo como motorista e, como companhia, seu neto mais, digamos, “gente fina”.

Gostava de madrugar na estrada e lembro-me que o frio atacava minhas magras costelas. O Sol só dava o ar da sua graça, timidamente, bem depois do sugestivamente denominado Alvorada Country Clube, já pra lá da Monguba ou Pacatuba. Podia-se, então, observar a exuberante vegetação montanhosa da Aratanha, que se apresentava com um verde dominante, salpicado de, por vezes, pontos de amarelo ou rosa da floração dos paus d’arco e, mais espaçadamente, o branco das barrigudas. Sinal de próximo bom inverno, dizia o velho, com a experiência de quem conhecia aquelas paragens com a intimidade de muitos anos.
Dois aspectos paralelos ao caminho atraiam minha atenção e enorme curiosidade: a linha férrea, sempre presente, por vezes à margem da rodovia ou, em outras ocasiões, cruzando-a; pela importância da própria, pode-se dizer que, na realidade, a estrada é que a acompanhava. E também, a marcante presença dos tubulões metálicos que traziam a água de Acarape, naquela época, o único reservatório que abastecia a antigamente diminuta cidade de Fortaleza.

Após Baturité, cidade natal do homem, subir o Maciço quando a força do astro-rei ainda não conseguia se pronunciar, somente agravava a falta de aquecimento na caminhonete. E, dali por diante, não existia qualquer espécie de pavimento. A estrada era por demais estreita, não permitindo na quase totalidade do percurso a passagem simultânea de dois veículos e as rodas do carro beirava assustadoramente os altos abismos. Quando chovia ou o piso ainda se encontrava úmido da noite anterior, a situação se agravava, pois a subida da serra é quase toda argila, mica e barro de louça. Entretanto, nada que o Overland 4 x 4 e o trabalho do primoroso condutor não pudessem resolver, apesar das freqüentes barreiras “derretidas” no caminho. E tome balanço!

Lá em cima não havia ainda luz elétrica e as casinhas expeliam, pitorescamente, através das suas chaminés, torvelinhos de fumaça. Os habitantes eram ingênuos e o tráfego de veículos tão ocasional que, invariavelmente, os transeuntes à beira do caminho paravam para observar a nossa passagem. E, a baixa velocidade da condução permitia se ouvir os galos, repetidamente, cantando espavoridos, como se alertassem uns aos outros à invasão dos seus bucólicos ambientes. Com certeza absoluta, aquele era o lugar onde existiam mais galos no mundo.
Costumava marcar nossa marcha de subida não pelos quilômetros rodados e sim pelos sítios existentes, enormes àquela época, com casas suntuosas e suas capoeiras, ou faxinas, herança dos áureos tempos dos cafezais, plantados à sombra das ingazeiras e responsáveis pela pompa e abundância que marcou um passado glorioso do maciço. Numa sucessão familiar, desfilavam ante os meus olhos, como em um filme, o Tijuca, primeira grande propriedade da serra, ainda no século XVIII e onde floresceram os primeiros pés de café vindos da França, via Pará; o Labirinto, com seus canaviais sempre envoltos pelas brumas nevoentas da aurora; o Brejo, logo após o Uirapurú e a entrada da Gruta; o Venezuela, antigo Cafundó, onde o Conde D’Eu e a sua comitiva da Expedição Científica ficaram hospedados; o Macapá, que um dia foi hotel e cassino; o Humaitá; o Monte-Flôr ; o Rio Negro; o Cana-Brava e seu lindo laguinho “arrodeado” de palmeiras e em seguida, o Logradouro com o seu charme fascinante, inalterado até hoje; o Uruguaiana, tão grande nos tempos anteriores, que abrangia serra, quebrada e sertão; logo depois, o Baixa Fresca, que foi do meu bisavô e onde meu avô morou até certa idade e onde existiam palmeiras imperiais altíssimas, “que eu ajudei a plantar”, como dizia o velho, com enlevo e emoção indisfarçáveis. Quantas belas lembranças...

O cheiro do mato, odores marcantes da espessa Mata Atlântica, invadia o interior do veículo com a mesma intensidade dos sons da passarada ou os latidos dos assustados cães e quanto maior fosse a altitude alcançada, menor a arrepiante temperatura; e aumentava a diversidade das cores, a beleza das paisagens e também a minha grande expectativa e ansiedade pela nossa chegada. Depois da Forquilha avistava-se, bem ao lado da, naquela altura, vereda, a casa branca da fazenda Floresta, de “Rodrigo Argolo Caracas”, como convenientemente frisado: pronto! Apenas virando à esquerda e, de longe se avistava a propriedade.
Na beira da estradinha que atravessa o terreno, do lado oposto à casa do morador, a única existente, ficava a centenária jaqueira, onde, à sombra da sua frondosa copa se estacionava o utilitário, para se embarcar os produtos do sítio: chuchus, laranjas, abacates, tangerinas, jacas, ocasionalmente urucum ou café e plantas ornamentais, como samambaias ou bromélias e as muitas flores, sempre-vivas e copos de leite. Além de bananas, muitas bananas, milhares de bananas.

Se a viagem acontecesse em um domingo, poderíamos, antes de nos dirigirmos ao terreno e passando ao largo de Guaramiranga, irmos até a movimentada feira de Pacotí, comprar “carne de vaca” ou uns taludos pernis de porco, como também outras variedades de frutas, especiarias, rapaduras, batidas e alfenins. Ou ainda ferramentas, insumos, sementes.
Ao burburinho de barraqueiros, mascates e fregueses, numa algazarra extravagante, misturavam-se os urros de animais amarrados e dispostos à venda, com a zoada dos inúmeros caminhões bananeiros e paus-de-arara apinhados de matutos.

Passando obrigatoriamente na bodega do Chico Birim, para tomar uma Brahma (tinha de ser Brahma) e relembrar com o antigo amigo feitos do arco da velha, ali meu avô desfiava causos, alguns bem cabeludos. Não se discutia de forma alguma a veracidade das escabrosas estórias; a dúvida era somente quanto ao ano do acontecido, se em 41... Ou teria sido em 36? Para mim pouco importava, eram maravilhosas de qualquer maneira. Encostado àqueles antigos balcões de madeira enegrecidos, quase sempre lambuzados por banha de porco salgada, escutava atento e encantadamente as conversas, enquanto minhas narinas percebiam as fortes emanações de peixe seco, fumo de rolo e cachaça, que inundavam o ambiente.

Contudo, não durava muito o nosso dia de aventuras: a inquietude do meu avô fazia-o estar sempre com pressa e regressávamos para casa ainda a tempo de “pegar” o almoço, que via de regra, nem era servido tão tarde assim.
Viajar é sempre muito bom. Acompanhado por pessoas queridas, melhor ainda. Para lugares que você ama e que povoam suas memórias, então, criam-se, indefectivelmente, momentos mágicos, inesquecíveis.

Ainda hoje, quando subo a serra, recordo do ronco brabo daqueles seis cilindros, da intrepidez daquelas empreitadas, do arrojo e coragem com que nos jogávamos naquelas ladeiras e na satisfação de vencê-las, com sobriedade. Muito da fascinação que sinto por máquinas, devo àquelas duas figuras, que faziam o difícil se tornar fácil, com uma tranqüilidade desconcertante. Poucas vezes me senti tão seguro, quanto no banco traseiro daquela Rural.
Alguns anos depois, já habilitado, tornei-me, com um orgulho que não me larga, o motorista que levava o Zé Mendonça para suas rápidas andanças nos territórios que outrora lhe pertenceu. Foram tantas e esplêndidas viagens, subidas e descidas, frio, calor, cansaço e admiração. Aprendi, definitivamente, a apreciar estradas, motores e lugares. E tive o melhor professor que alguém poderia ter.
Todas estas outras magníficas recordações dariam, certamente, para escrever um livro... Mas isto já é outra estória!!!

7 comentários:

  1. Por mais que se passe a vida toda ao lado de alguém, por mais que essa pessoa seja o seu pai, existem coisas que estão dentro do coração e da cabeça que nem sempre se tem a oportunidade de descobrir. Ainda bem que vc fez esse blog pra compartilhar.
    Beijo da filha!

    ResponderExcluir
  2. De tudo que desejo que tu saibas
    A minh'alma é o que mais preservo,
    Não por receio, egoísmo ou maldade, mas
    Pra te guardares do que mais detesto.

    Meu eu profundo, imperfeito e indigesto
    Guarda coisas que a ninguém mais divido,
    Mas se o tempo impõe necessidade, o gesto
    De escrever, de te contar, não duvido

    Que há tanta, tanta coisa entre nós dois
    Que algumas coisas podem ficar para depois
    Sem que em especial isto algo signifique

    E num futuro, quando enfim se descortina
    Uma faceta nova, a luz e a novidade anima,
    Meu infinito amor então dignifique-te.

    Beijo do pai!

    ResponderExcluir
  3. Prezado Adauto

    Parabéns pelo Blog, pelo texto. Vou colocá-lo nos "meus favoritos" para acompanhá-lo. Fiquei satisfeito em ver a fotografia do Zé Mendonça, sua imagem lembra o meu avô Edgard.

    Um abraço

    José Fracisco de Mendonça Borges

    ResponderExcluir
  4. Muito bonito e cheio de peculariedades esta história de suas viagens com Tio Zé Mendonça,era assim que muito criança ouvia minha mãe falar com muito carinho de sua pessoa, que mais tarde tive a oportunidade de conhece-lo. Tive também a felicidade de conhecer Pernambuquinho,com tia Iolete e seu relato me traz lembranças maravilhosas.
    Um abraço.
    Lúcia de Fátima Borges de Araújo

    ResponderExcluir
  5. Sabia do seu talento para as artes,principalmente a de dá forma ao que aparentemente não tem! Sabia de você como artesão,artista plástico,marceneiro...Sabia que era um leitor voraz,mas desconhecia o seu talento inconfundível para as letras,aliás para dá forma a elas na forma de poema,crônica,conto...Parabéns seu Júnior pelo belo texto,por essa maravilhosa recordação que me fez "viajar"(o que faz todo bom conto)e relembrar a minha infância com o meu avô,com pessoas queridas que já não estão mais aqui,mas que me levaram por caminhos e lugares que até hoje reverberam na minha alma/coração.

    Beijo grande

    ResponderExcluir
  6. Seu Junior, querido.
    Eu adoro textos que têm alma, coisa rara hoje em dia com tantos escritores de ocasião.
    Deu para vislumbrar um tempo que já se foi, sentir o frio e os cheiros que você experimentou e viajar junto nesta estrada tão bem pavimentada de memórias.
    Valeu por compartilhar!
    Abração!

    ResponderExcluir
  7. Que beleza de texto! Adoro ler esse tipo de história, como quem faz um poema... Palavras que fluem da alma, sem nenhum pudor e se expõem de uma forma tão linda, tão simples e tão fortes... Parabéns pelo seu Bolo!

    ResponderExcluir

Livre pensar, é só pensar. Mas na cabeça de nada lhe serve. Exprima-o!